"A BNCC do Ensino Fundamental – Anos Iniciais, ao valorizar as situações lúdicas de aprendizagem, aponta para a necessária articulação com as experiências vivenciadas na Educação Infantil. Tal articulação precisa prever tanto a progressiva sistematização dessas experiências quanto o desenvolvimento, pelos alunos, de novas formas de relação com o mundo, novas possibilidades de ler e formular hipóteses sobre os fenômenos, de testá-las, de refutá-las, de elaborar conclusões, em uma atitude ativa na construção de conhecimentos. Nesse período da vida, as crianças estão vivendo mudanças importantes em seu processo de desenvolvimento que repercutem em suas relações consigo mesmas, com os outros e com o mundo." (BNCC, 2018, p. 58)

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Pequenos autores: navegando entre mitos e lendas das ilhas que bailam

Área(s): Língua Portuguesa.

O objetivo desta prática foi incentivar o hábito da leitura crítica e reflexiva entre os alunos do 5º ano do Ensino Fundamental e prepará-los para os desafios do próximo ciclo de estudos em outra instituição.

Componente(s): Língua Portuguesa .
Quando: Em qualquer momento do ano letivo.
Materiais:
  • lápis;
  • papel;
  • celular;
  • scanner.

Habilidades trabalhadas: EF35LP07; EF35LP09; EF35LP12; EF04LP03; EF15LP08; EF15LP09; EF15LP16.
Escola: Escola Municipal Vila Progresso, Macapá (AP).
Professor(a) responsável: Paulino Rocha Barbosa.

O que é:

O projeto teve como objetivo contribuir com os alunos do 5º ano em sua preparação para ingresso no 6º ano, em outra escola. Em sintonia com os objetivos da escola, procuramos colaborar na missão escolar de incentivar a leitura crítica e reflexiva desses jovens, num contexto de alfabetização já consolidada.

Para alcançar as metas de produção escrita de histórias e posterior socialização dos conteúdos pela leitura, busquei temáticas relacionadas ao contexto local dos alunos. O objetivo final era a elaboração de cartilha com os textos dos alunos.

Também surgiu a ideia de os alunos produzirem radionovelas, cujos roteiros seriam as próprias histórias narradas. Para desenvolver o hábito da leitura, começamos pela escrita de histórias que circulavam na comunidade, valorizando o conhecimento prévio dos alunos, os saberes tradicionais e a cultura local.

Tudo isso foi baseado na teoria desenvolvida por Piaget e Ferreiro, que é a de construção de conhecimento tendo o aluno como sujeito ativo e o professor como mediador do processo ensino-aprendizagem.

No desenvolvimento do projeto, planejei coisas bem simples, para que não trouxessem custos à escola, que sobrevive com um orçamento reduzido.

Por isso, parte do projeto foi desenvolvido basicamente com lápis, papel e vontade de aprender.

Apesar de sua simplicidade, o projeto foi uma oportunidade para aprender vários conteúdos nas diferentes áreas do conhecimento, e de forma interdisciplinar e contextualizada.

Ele possibilitou o desenvolvimento da escrita por meio do estudo da coesão textual, da ortografia e da gramática. Utilizou também recursos da História, na concretização do objetivo de retratar o povo ribeirinho, com, por exemplo, seus meios de transporte, seu modo de ser e de viver.

Geografia, por sua vez, contribuiu com informações sobre aquele meio, formado por ilhas e rios.

O suporte de Ciências se deu com explicações sobre fenômenos naturais que assolam a região, como a erosão e o desmatamento, e sobre plantas medicinais e extração de óleos naturais.

Já a disciplina Matemática colaborou com conhecimentos para a medição do tempo, das grandezas e dos espaços. Todos esses conteúdos presentes nas histórias narradas foram aprofundados em sala de aula.

O projeto foi desenvolvido para ser realizado na sala de leitura, no contraturno escolar. Porém, a recorrente falta de energia elétrica na escola nos levou para outros espaços: corredores, o refeitório, embaixo de árvores, nas pontes perto do rio e até nas arquibancadas do campo de futebol.

Como fazer:

Os alunos do 5º ano formavam uma clientela já alfabetizada, mas com dificuldades no desenvolvimento da leitura (interpretativa e reflexiva). Além disso, muitos demonstravam não gostar de ler. A preocupação da escola era garantir uma alfabetização consolidada a esses alunos, para que pudessem prosseguir seus estudos em outras escolas sem maiores dificuldades.

Para isso, foi preciso ouvir os “gritos” dos alunos, seus desejos e suas repulsas. “Gritos” que, muitas vezes, não estão explícitos num pedido de socorro, mas escondidos nas ações ou atrás de um discurso informal.

Dessa forma, a observação e o diálogo foram instrumentos importantes para a confirmação do diagnóstico inicial oferecido pela escola e para o planejamento das ações. Seguindo os ensinamentos de Paulo Freire, com sua pedagogia dialógica, parti para a ação.

Os alunos me deram muito mais elementos do que eu procurava ou necessitava para escrever um bom projeto de leitura.

Durante o processo de observação e conversas informais, os alunos foram se mostrando apaixonados por histórias sobre a cultura e o folclore locais, ou seja, sobre seus contextos de vivência.

E esse foi o nosso ponto de partida. Nesse contato inicial, os alunos me deram muito mais elementos do que eu procurava ou necessitava para escrever um bom projeto de leitura.

De início, fiz um levantamento do acervo da sala de leitura da escola e descobri uma grande variedade de livros literários infantis e infanto-juvenis, a maioria deles ainda guardada em caixas, sem nunca ter sido usada.

Marquei algumas aulas na sala de leitura. Deixei os alunos livres para que escolhessem os livros que quisessem ler.

No início, foi aquele alvoroço. Houve até briga para pegar este ou aquele exemplar. Depois do fogo inicial, os livros foram sendo esquecidos nas mesas. Quando eu percebi que ninguém mais estava lendo, reuni todos para que contassem as histórias que haviam lido.

Para minha surpresa, eles não souberam contar quase nada. Alguns tentaram até inventar histórias. Outros sequer lembravam o título do livro que haviam folheado.

Concluí, então, que o diagnóstico inicial apresentado pela escola procedia. Embora eu não concordasse com a afirmativa de que os alunos não gostavam de ler, uma coisa parecia evidente: aquele tipo de leitura não os atraía.

Estava lançado um grande desafio: descobrir o tipo de leitura de que eles gostavam para, assim, propor atividades voltadas àquele interesse.

Tudo começou a ganhar rumo quando um aluno me perguntou se eu sabia contar histórias. Disse que sim. Então, me desafiou a contar uma. Comecei a contar a história que acabara de ler num dos livros da sala.

Imediatamente fui interrompido pelos alunos dizendo que não queriam essas pois eram "muito chatas”. Perguntei, então, que histórias eles gostariam de ouvir. Os alunos falaram em histórias de fantasmas, da "mãe do mato", de assombração etc., daquelas que seus pais contavam, segundo eles. Só que aquelas histórias não estavam em nenhum livro. Eu não saberia contá-las.

Foi aí que devolvi o desafio para a turma: como atividade, os alunos contariam as histórias da comunidade – de pescadores, agricultores, da floresta, dos rios.

O acervo era interminável. Estávamos diante de um imenso patrimônio imaterial que poderia ser retirado da memória das pessoas mais velhas, um patrimônio repassado oralmente de geração em geração por anos.

Era preciso fazer algo para que outras pessoas também pudessem ter acesso àquele conhecimento tradicional, muitas vezes ignorado pelas escolas, mas que deve ser um importante ponto de partida para gerar novos conhecimentos.


Na primeira aula, apresentei o projeto aos alunos. Em seguida, listamos todas as histórias que conheciam. Esse foi um ponto importante, uma vez que o professor precisa saber dessas histórias previamente para pesquisar sobre elas e contribuir com a turma.

Feito isso, foi escolhida uma história para ser trabalhada na oficina da semana seguinte. Todos os alunos ficaram encarregados de pesquisar sobre aquela história em suas famílias.

Na semana seguinte, a aula começou com uma roda de diálogo. Cada aluno expôs o que havia descoberto. Foi um momento da troca de conhecimentos. No quadro, fui registrando as principais contribuições.

O primeiro contato dos alunos com a produção dos textos foi um desastre, pois essa prática quase não havia sido trabalhada na sala de aula regular. Ficou claro que os alunos tinham muita facilidade para contar as histórias oralmente, mas não conseguiam reproduzir o conteúdo pela escrita.

Os alunos escreviam direto, sem pontuação ou parágrafos, e com muitos erros ortográficos. Os textos, geralmente, não tinham unidade e coesão textual.

Mas, ainda assim, saiu. Eles sabiam que tinham de escrever, mas não sabiam como fazer isso.

Durante o processo, os alunos perguntavam para mim e para os colegas sobre a correta grafia. A classe se tornou um grande espaço de aprendizagem de gramática e ortografia. O professor ajuda, o colega ajuda, e todos vão construindo seus conhecimentos juntos.

A contribuição do dicionário foi fundamental. Os alunos também gostaram de escrever no quadro as palavras das quais tinham dúvidas sobre a correta grafia. Assim, ficou mais fácil a explicação das regras. A dúvida de um poderia ser a dúvida do outro.

Depois do texto pronto, era hora de voltar para casa. Na mochila, os alunos levaram um novo texto para ser corrigido e lido com a ajuda da família. Infelizmente, nem todos os alunos receberam essa ajuda em casa, pois havia pais que não eram alfabetizados. Mas o simples fato de eles escutarem a leitura dos textos dos filhos ajudou muito.

No encontro seguinte, sentei com cada aluno para verificar seus textos. Os erros gramaticais e ortográficos foram pontuados para correção pelos próprios alunos. Pela leitura, foi possível fazer com que os alunos percebessem, por exemplo, a necessidade de colocação ou retirada de pontuação e acentuação.

Naquele momento, fizemos uma organização dos textos. Os parágrafos foram sendo redefinidos para que houvesse coesão no conteúdo.

Fiz anotações sobre as principais dificuldades para que fossem trabalhadas posteriormente.

Até aquele momento, os textos eram feitos em folhas de rascunho, muitas delas reaproveitadas de cadernos do ano anterior. Com as correções feitas, os alunos deveriam reescrever a história na sua cartilha e, em seguida, fazer uma ilustração e dar um título à produção.

A etapa seguinte foi a da leitura dos textos em sala de aula, para que as histórias fossem socializadas. Cada aluno escreveu de acordo com a sua visão de mundo.

No início do projeto, os alunos ainda sentiam muita vergonha de ler em público. Não forcei alguma situação. A superação do medo deveria acontecer naturalmente. Meu papel foi incentivá-los para que não desistissem

Depois que cada um fez a sua leitura, abri um momento para comentários dos colegas. Esse foi também um momento para a proposição de algumas situações de aprendizagem.

Um dos maiores incentivos ao projeto veio de um aluno, mas não de forma intencional. Certo dia, cheguei cedo na escola e percebi algo incomum. Não ouvi algazarra, como sempre ocorria.

Todos estavam juntos, como se estivessem vendo ou ouvindo algo muito interessante. Logo reconheci um garoto no meio dos alunos, com sua cartilha na mão. Eles estavam saboreando a história produzida e contada por aquele aluno. Fiquei emocionado. Foi um daqueles momentos em que todo o esforço para promover a educação é compensado.

A partir daquele dia, propus a socialização das histórias com a turma da Educação Infantil. Semanalmente, os alunos foram até a sala das crianças para contar suas histórias, vencendo a timidez inicial.

Segundo o planejamento, para que a cartilha fosse produzida, cada aluno teria de digitar sua produção nos computadores da escola. Para tanto, os estudantes teriam aulas de edição de textos.

Outro objeto de sistematização do conhecimento pensado pelo projeto foi a produção de radionovelas, tendo como enredo as histórias narradas pelos alunos. As gravações foram feitas em aparelhos celulares para posterior edição pelo professor.

Prontas, as radionovelas foram apresentadas aos alunos e, depois, disponibilizadas para outros professores usarem em salas de aula.

A radionovela é um importante instrumento de educação, pois contribui para desenvolver a imaginação e a fantasia da criança.

A cartilha e a radionovela foram lançadas para a comunidade no final de 2018.

Após o cumprimento das metas iniciais, novos objetivos foram acrescentados ao projeto, que prossegue em seu andamento na escola.

Os resultados obtidos até agora dão ideia de seu sucesso no aprendizado dos alunos. Isso porque o projeto ofereceu à escola a oportunidade de trabalhar diversos conteúdos nascidos das necessidades dos alunos.

Paralelamente a isso, estamos resgatando o folclore local, muitas vezes esquecido no imaginário das pessoas mais velhas, e, acima de tudo, estamos ensinando, aprendendo e socializando este saber com outras pessoas.

O projeto foi pensado para a sala de leitura, mas pode facilmente ser trabalhado em sala de aula regular, pela possibilidade de exploração das diversas áreas do conhecimento.

Ponto importante a destacar foi o envolvimento dos pais nas atividades e na evolução dos filhos na escrita e na leitura.

Por não exigir participação obrigatória das crianças, o projeto poderia ter enfrentado problemas de aceitação, mas a frequência dos alunos mostrou exatamente o contrário. Quase a totalidade da turma participou ativamente do projeto de forma espontânea. Outro ponto importante a destacar foi o envolvimento dos pais nas atividades e na evolução dos filhos na escrita e na leitura.

Mesmo não sendo uma atividade da grade curricular, os alunos tiveram sua frequência controlada. Ao final de cada de cada oficina, receberam pontuação pelas etapas executadas. O objetivo não foi medir o quanto o aluno já tinha aprendido, mas, sim, valorizar a participação nas atividades. A pontuação fez parte do certificado que cada um recebeu no final do ano.

O projeto deu tão certo que, em 2018, foi incluído no Projeto Político-Pedagógico da escola.

Vale destacar que as “ilhas que bailam”, que aparecem no título do projeto, referem-se ao nome do lugar “Bailique”, que na linguagem indígena significa “o doce bailado dos pássaros”.