Um olhar para a educação multi-hipermídia
SALA DE AULA – DIA
Sala pequena e iluminada. Cadeiras e mesas espalhadas. Três garotas e seis rapazes, com um tablet, gravam suas vozes e filmam uns aos outros. Animados conversam, em língua paiter, sobre o aplicativo que estão desenvolvendo e anotam numa folha colorida a palavra “identidade”. Uma das garotas observa, fixamente, as nuances da luz do sol. Ela pega um celular do bolso e caminha lentamente em direção à janela. Os sons da mata ficam mais altos. Calmamente, posiciona o celular no batente da janela de madeira. A garota olha para fora e percebe no chão uma grande poça d’água. No reflexo da poça, se vê. Com o celular, tenta capturar o reflexo de sua imagem.
O texto que abre este post é um exercício de imaginação inspirado na prática descrita pelo educador Luiz Weymilawa Suruí, de Cacoal, Rondônia. Na passagem, a aluna-protagonista parece fazer uma descoberta ao atribuir sentido e significado a uma simples foto de si mesma, assimilando as reflexões desencadeadas ao longo da produção do aplicativo: “Realizamos pesquisas com as pessoas mais velhas e sábias de nossa comunidade. Discutimos o uso da tecnologia de forma positiva e como um instrumento de luta e preservação da nossa identidade paiter”, conta o professor Luiz.
Já na cidade de Valença do Piauí, a problemática enfrentada pela escola estava relacionada com o “outro”. O professor Antonio Freitas cita a relação de preconceito racial, regional e religioso entre seus alunos na escola piauiense; logo, o projeto desenvolvido objetivou a promoção de uma cultura de paz. Aqui, o foco não foi a produção midiática, mas sim uma leitura crítica de imagens, músicas e filmes, necessária por conta de frases como esta: “Professor, eu assisti a um vídeo de um cientista no YouTube, e ele comprovou 100% que o racismo é da genética humana; é perda de tempo discuti-lo".
Nos exemplos, a linguagem multimídia instrumentaliza reflexões; possibilita novos espaços de expressão e criação; facilita o trabalho coletivo e colaborativo; e, sobretudo, potencializa a construção de novos sentidos. E por quê?
Não é uma exclusividade do século XXI a presença de tecnologias na escola, seja elas o giz, o livro ou o videocassete. No Brasil, inclusive, foi instituído em 1937 o Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), cuja função era “promover e orientar a utilização da cinematographia, especialmente como processo auxiliar do ensino, e ainda como meio de educação popular em geral.” (BRASIL, 1937, art.40). No entanto, a iniciativa não dialogava com a formação de professores e muito menos com os alunos, ficando restrita à produção, cópias e exibição. Um clássico da época é o videoclipe A Velha a Fiar!
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Conheça a interessante história do Instituto Nacional de Cinema Educativo: da história escrita à história contada – um novo olhar.
Retomando o questionamento, podemos pressupor que os impactos positivos da multimídia na aprendizagem estão diretamente relacionados com a sensibilidade, a criatividade, a criticidade, o planejamento, a mediação e as habilidades digitais dos educadores e educadoras; o que não reduz o papel da comunidade escolar e da infraestrutura.
Antes de propor “uma ideia na cabeça e um celular no bolso”, há a necessidade de elaborar estratégias de letramento digital, o que consiste no domínio técnico das tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs), mas também na capacidade de selecionar, avaliar, reorganizar, decodificar e atribuir sentido às TDICs, o que não pode desconectar-se de uma leitura de mundo, de contexto além das telas – para que o uso acrítico das mídias não reforce estereótipos, preconceitos e violências, como expõe o professor Antonio Freitas sobre o vídeo no YouTube.
"A leitura crítica implica, para mim, basicamente, que o leitor se assume como sujeito inteligente e desvelador do texto. Nesse sentido, o leitor crítico é aquele que até certo ponto “reescreve” o que lê, "recria” o assunto da leitura em função dos seus próprios critérios. Já o leitor não-crítico funciona como uma espécie de instrumento do autor, um repetidor paciente e dócil do que lê. Não há nesse caso uma real apreensão do significado do texto, mas uma espécie de justaposição, de colagem, de aderência.” Moacir Gadotti, Paulo Freire e Sérgio Guimarães)
Na citação, Paulo Freire refere-se à literatura; entretanto, podemos emprestar o raciocínio para o contexto das mídias. Por exemplo, essa frase poderia ser representada por um texto, por um vídeo ou por uma mensagem de Whatsapp. Ou, ainda, poderia ser um meme do acervo do Museu de Memes.
Multimídia não é só um CD-ROM – e nem está nos #trending topics
“É um conjunto de possibilidades de produção e utilização integrada de todos os meios da expressão e da comunicação, como desenhos, esquemas, fotografias, filmes, animação, textos, gráficos, sons, tudo isso animado e coordenado por programas de computador, utilizando-se de todos os recursos disponíveis para a gravação e reprodução desses elementos. Mais recentemente, possibilitando uma interação direta com os seus usuários e sua distribuição pelo ar ou por cabo sem perda de qualidade.” Nelson de Luca Pretto)
“A hipermídia é composta por conglomerados de informação multimídia (verbo, som e imagem) de acesso não sequencial, navegáveis por meio de palavras-chave semialeatórias. Assim, os ingredientes da hipermídia são imagens, sons, textos, animações e vídeos que podem ser conectados em combinações diversas, rompendo com a ideia linear de um texto com começo, meio e fim pré-determinados e fixos.” (Lucia Santaella)
“Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam. Convergência é uma palavra que consegue definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais, dependendo de quem está falando e do que imaginam estar falando. [...] A expressão cultura participativa contrasta com noções mais antigas sobre a passividade dos espectadores dos meios de comunicação. Em vez de falar sobre produtores e consumidores de mídia como ocupantes de papéis separados, podemos agora considerá-los como participantes interagindo de acordo com um novo conjunto de regras, que nenhum de nós entende por completo. [...] Nenhum de nós pode saber tudo; cada um de nós sabe alguma coisa; e podemos juntar as peças, se associarmos nossos recursos e unirmos nossas habilidades. A inteligência coletiva pode ser vista como uma fonte alternativa de poder midiático.” Henry Jenkins)
A verdade é que o conceito de multimídia – que podemos simplificar como a união de mídias dinâmicas (vídeo, por exemplo) e estáticas (fotografia) em suportes digitais – está desmanchando no ar!
Hoje, a informação que circula no ciberespaço transborda essa simples união de linguagens, desembocando na hipermídia. Sintetizando em uma #hashtag, multimídia seria #tudojuntoemisturado e a hipermídia seria #tudojuntomisturadoeforadeordem!
Mais abrangente, outro conceito tenta dar conta das complexidades desta era exponencial: a cultura da convergência, baseada no tripé convergência dos meios de comunicação, cultura participativa e inteligência coletiva.
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Traduzindo: saímos do CD-ROM para os dispositivos móveis com colaboração em tempo real suportada por recursos multimídia na nuvem, rompendo com as barreiras do tempo e do espaço! Está duvidando?
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E o que isso tem a ver com aprendizagem?
“Educação é o processo pelo qual aprendemos uma forma de humanidade. E ele é mediado pela linguagem. Aprender o mundo humano é aprender uma linguagem, porque os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo.” (Rubem Alves)
As mudanças nunca foram tão velozes. A vida hipermidiática demanda novas relações de ensino, aprendizagem, produção, construção e difusão do conhecimento, das quais a escola não pode ficar alheia. Embora haja esforços para a integração das mídias no processo educativo, esse movimento ainda se dá de maneira bastante linear, ou seja, multimídia. Artefatos como os Recursos Educacionais Abertos (REA) são pouco explorados, mesmo existindo um movimento global em torno da causa.
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Blogs, redes sociais, espaços virtuais de aprendizagem, aplicativos, videoconferências, ferramentas colaborativas em tempo real (como o Google Drive) e espaços imersivos (como o Google Arts), entre tantas outras ferramentas – aliadas à inovação pedagógica, à gestão democrática e às políticas públicas consistentes – contribuiriam para uma aprendizagem mais significativa.