Uma escola cidadã para as juventudes brasileiras: contextualização, interdisciplinaridade, aprendizagem colaborativa e autoria/protagonismo juvenil
O mundo inteiro tem discutido a necessidade de transformações profundas no Ensino Médio. Em diferentes sociedades, com diferentes trajetórias históricas, as juventudes – em sua pluralidade e diversidade – têm desafiado os modelos tradicionais de escolarização e os limites das arquiteturas curriculares e das práticas pedagógicas convencionais.
O que se tem visto é a demanda cada vez mais explícita por uma escola cidadã. De modo geral, uma escola cidadã é aquela comprometida com uma sociedade justa, solidária e democrática e que é capaz de, na sua proposta pedagógica, acolher os educandos e os educadores num processo colaborativo, dialógico e emancipador de apropriação e reconstrução dos saberes socialmente relevantes já sistematizados no mundo e de invenção de outros saberes, que florescem na experiência histórica concreta cotidiana dos sujeitos que ali se encontram.
As experiências compartilhadas aqui por educadoras e educadores brasileiros de escolas de Ensino Médio revelam um movimento consistente na realização de alguns princípios fundamentais do que poderíamos considerar uma concepção cidadã da escola para jovens:
- a contextualização;
- a trans/interdisciplinaridade;
- a aprendizagem colaborativa; e
- a autoria/protagonismo juvenil.
Esses princípios estão explícitos no parágrafo 2º do artigo 7º das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, que afirmam:
“[...] o currículo deve contemplar tratamento metodológico que evidencie a contextualização, a diversificação e a transdisciplinaridade ou formas de interação e articulação entre diferentes campos de saberes específicos, contemplando vivências práticas e vinculando a educação escolar ao mundo do trabalho e à prática social”.
O princípio da contextualização nos coloca o desafio (e a importância) de organizar o currículo da escola e as práticas pedagógicas para que, de modo intencional e significativo, os estudantes possam experimentar intimidade com os conteúdos de ensino a partir de suas vivências e experiências singulares e a partir dos conhecimentos que já estão enraizados em seu cotidiano.
Assim, para que possam desenvolver a habilidade de “analisar e avaliar criticamente os impactos econômicos e socioambientais de cadeias produtivas ligadas à exploração de recursos naturais e às atividades agropecuárias”, prevista para a área de ciências humanas na Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio, os estudantes da EEEM Waldemar Maues, de Belterra (PA), sob a liderança da professora Laura Cristina Chagas, empreenderam uma pesquisa em torno das implicações sociais, econômicas, culturais e ambientais do uso de agrotóxicos na cultura de soja em franca expansão no município.
Da mesma forma, para aprenderem a “empregar diferentes métodos para a obtenção da medida da área de uma superfície e deduzir expressões de cálculo para aplicá-las em situações reais com ou sem apoio de tecnologias digitais”, habilidade prevista para a área de matemática da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio, os estudantes da Escola Estadual Agrícola Terra Nova, que se organiza a partir da Pedagogia da Alternância, se aventuraram, juntamente com suas famílias, na construção e no uso de geoplanos, construídos sob a orientação do professor Vinício de Figueiredo.
Já a Escola Indígena Estadual de Ensino Fundamental e Médio Sertanista José do Carmo Santana, em Cacoal (RO), identificando no contexto local a complexidade das questões identitárias que marcam a vida de jovens indígenas brasileiros nas relações com a sociedade não indígena, engajou estudantes da etnia paiter-suruí, sob a liderança do professor Luiz Weymilawa Suruí, na construção de um aplicativo para registro, compartilhamento e disseminação do patrimônio cultural e linguístico da comunidade. Foi contextualizada a construção de habilidades importantíssimas previstas na Base Nacional Curricular do Ensino Médio, como “analisar e avaliar os impactos das tecnologias na estruturação e nas dinâmicas de grupos, povos e sociedades contemporâneos (fluxos populacionais, financeiros, de mercadorias, de informações, de valores éticos e culturais)” ou “analisar e experimentar diversos processos de remediação de produções multissemióticas, multimídia e transmídia, desenvolvendo diferentes modos de participação e intervenção social”.
O princípio da interdisciplinaridade, por sua vez, nos convida a considerar o caráter integrado e complexo do conhecimento e a superar a excessiva fragmentação e a especialização dos saberes nas disciplinas tradicionais da escola. Reconhecendo que a realidade é sincrética e complexa, a interdisciplinaridade permite que possamos combinar a profundidade da especialização de cada área do conhecimento com um olhar atento às conexões, interações e implicações entre os diferentes campos do saber. A perspectiva interdisciplinar amplia a potência das aprendizagens na medida em que favorece a construção de conexões entre os saberes, ativando redes de sentido e significado. Os estudantes do Câmpus Cachoeiro do Itapemirim, do Instituto Federal do Espírito Santo, experimentaram essa potência num projeto liderado pelo professor Edmundo Rodrigues Júnior, que envolveu conteúdos de história, ciência e tecnologia, artes cênicas e língua portuguesa, engajando-os numa pesquisa e na produção de um espetáculo teatral sobre a invenção do rádio.
Do mesmo modo, o Colégio Estadual Eron Domingues, de Marechal Cândido Rondon (PR), mobilizou as áreas de História, Sociologia e Língua Portuguesa para engajar os estudantes num projeto de educação política para a cidadania, no qual puderam conectar aprendizagens sobre a história das lutas sociais e da construção da democracia, sobre a organização, o funcionamento e as interações entre os três poderes da República e sobre a produção, a leitura e a interpretação de textos próprios das esferas de circulação política, midiática e jurídica.
O princípio da aprendizagem colaborativa está ancorado no reconhecimento de que a aprendizagem é, necessária e socialmente, mediada, e que são a qualidade e a recorrência das interações entre os sujeitos que potencializam saltos significativos no desenvolvimento. Assim, é imprescindível que a escola que se pretende cidadã fomente e promova situações coletivas, compartilhadas e colaborativas de aprendizagem dos jovens entre si e dos jovens com outros parceiros.
Foi esse o caminho trilhado pela EEEIFM Brigadeiro Fontenelle, da cidade de Belém (PA) na construção de saberes em torno da experiência social e histórica da comunidade afroindígena de jovens da periferia da cidade, sob a liderança da professora Lilian Cristiane Barbosa de Melo. Provocando os jovens a conhecer e dialogar com coletivos de ativistas, militantes sociais e artistas da cidade, a escola construiu um intenso campo de compartilhamento de saberes e fomentou a colaboração e o trabalho compartilhado de pesquisa, sistematização e disseminação de conhecimento e cultura com os jovens. Do mesmo modo, o projeto Laboratório Vivo, liderado pela professora Paula Rosa de Sousa Prado, no Colégio Estadual Oseas Borges Guimarães, em Goiatuba (GO), mobilizou o trabalho colaborativo e o compartilhamento de responsabilidades para a pesquisa e a construção de conhecimento na área de educação ambiental.
Por fim, em todas as experiências aqui sistematizadas, a autoria/o protagonismo juvenil foram o eixo organizador do trabalho pedagógico desenvolvido pelas professoras e professores. Quando falamos em autoria ou em protagonismo juvenil, estamos reconhecendo que os jovens são sujeitos de sua própria aprendizagem e de seu processo de desenvolvimento, e que, portanto, as situações de ensino e aprendizagem devem ser organizadas de modo que eles exerçam, efetivamente, um papel autoral, ativo e criativo de (re)construção e invenção de saberes que desejamos que eles dominem.
Ao considerarmos radicalmente esse princípio de autoria/protagonismo juvenil, estaremos atentos à diversidade de cenários e condições socioculturais nos quais a escola de ensino médio está inserida. Nesse sentido, as educadoras e os educadores relatam, nas suas práticas, a experiência de ensinar e aprender com jovens matriculados em diferentes modalidades da educação básica de nível médio. Enxergamos as possibilidades de trabalho com as modalidades regular e integral (em contextos urbanos e rurais), com a modalidade de educação indígena, de educação no campo, de educação quilombola e de educação profissional e técnica integrada ao ensino médio.
Se é incontornável que estejamos conscientes dos enormes desafios do ensino médio e da garantia do direito pleno à educação para as nossas juventudes, também nos parece imprescindível reconhecer algo que as experiências que organizamos aqui nos revelam: a enorme potência criativa e a mobilização crítica e consistente dos educadores e educadoras na invenção cotidiana de uma escola contemporânea, significativa e cidadã para os jovens brasileiros.