"A BNCC do Ensino Fundamental – Anos Iniciais, ao valorizar as situações lúdicas de aprendizagem, aponta para a necessária articulação com as experiências vivenciadas na Educação Infantil. Tal articulação precisa prever tanto a progressiva sistematização dessas experiências quanto o desenvolvimento, pelos alunos, de novas formas de relação com o mundo, novas possibilidades de ler e formular hipóteses sobre os fenômenos, de testá-las, de refutá-las, de elaborar conclusões, em uma atitude ativa na construção de conhecimentos. Nesse período da vida, as crianças estão vivendo mudanças importantes em seu processo de desenvolvimento que repercutem em suas relações consigo mesmas, com os outros e com o mundo." (BNCC, 2018, p. 58)

Podcast

Ouça o podcast sobre os Anos Iniciais do Ensino Fundamental.

Empreender para compreender: educação financeira na prática

Área(s): Matemática.

O objetivo desta prática foi possibilitar aos alunos o desenvolvimento de atitudes conscientes e uma relação saudável com o dinheiro no dia a dia e a disseminação desse conhecimento às famílias.

Componente(s) curricular(es) envolvido(s):

Matemática.

Quando:

Ao longo do ano letivo, com duração aproximada de um bimestre.

Materiais:
  • materiais de uso cotidiano;
  • recicláveis;
  • dinheiro de mentirinha;
  • sala de informática com acesso à internet (desejável).
Habilidades trabalhadas:

EF04MA03; EF04MA04; EF04MA06; EF04MA13; EF04MA25

Professor(a) responsável:

Priscila Brandão Casado.

Escola:

Escola Estadual Professor Francisco Portugal, Aracaju (SE).

O que é:

O presente projeto foi desenvolvido com uma turma do 4º ano do Ensino Fundamental, num total de 25 alunos, com idades entre 8 e 12 anos.

Com base nos diálogos dos alunos sobre mudanças na situação financeira de suas famílias, vitimadas pelo desemprego, e sobre o impacto dessa nova realidade na vida escolar da turma, surgiu o projeto “Empreender para compreender: educação financeira na prática”.

Como fazer:

Foi a partir de 2017 que começamos a observar mudanças no perfil dos alunos matriculados na escola. Gradativamente, ingressavam estudantes provenientes de instituições particulares de ensino, em virtude da impossibilidade dos pais de manterem o pagamento das mensalidades.

Essa mudança no perfil das turmas gerou algumas disparidades nas salas de aula, com níveis de aprendizagem diversos, participação e comprometimento das famílias de forma diferenciada e realidades sociais e culturais distintas.

À medida que fui conhecendo a turma, consegui observar, por meio de avaliações diagnósticas, que uma parcela significativa dos alunos apresentava dificuldades significativas em Matemática, principalmente sobre noções e conceitos básicos, interpretação de problemas matemáticos e resolução de cálculos.

O que chamou bastante a atenção foi o fato de dificuldades permearem todas as realidades naquele espaço. Tanto alunos oriundos da rede particular quanto os da rede pública se igualavam nas dificuldades com a Matemática.

O trabalho foi pensado para ser desenvolvido entre setembro e novembro de 2017. Alguns meses antes, eu havia buscado apoio da representação de Sergipe do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).

A instituição disponibilizou alguns materiais gráficos e didáticos para crianças sobre empreendedorismo. No entanto, essa era apenas uma pequena parte do que eu precisava. Como não tinha muito conhecimento sobre a temática, necessitava de meios para adequar o assunto à faixa etária e à realidade da turma.

O ponto de partida foi a aquisição de um cofrinho. Nele, guardaríamos o dinheiro arrecadado para a compra de materiais para a culminância do projeto, no mês de novembro.

Em conversa com a turma, chegamos ao acordo de que todos colaborariam com a quantia de R$ 1,00 por semana, e que essa quantia seria utilizada como investimento. Enviei pedido de autorização aos pais explicando o intuito da arrecadação. Todos concordaram com a proposta.

Num segundo momento, após trabalharmos alguns conceitos norteadores como poupança, investimento e rendimento, propus à turma que pensássemos em alternativas para fazer o dinheiro render.

Durante as discussões, surgiu a ideia de vender algo na escola. Era necessário que fosse algo simples e prático, além de criado pelos próprios alunos.

Depois de várias propostas, definimos o “Geladinho Gourmet” como produto para comercialização no ambiente escolar.

Tudo foi previamente acordado com a equipe diretiva e explicado aos outros professores e respectivos alunos.

A proposta visava estimular o empreendedorismo, com os alunos ampliando o relacionamento com a comunidade escolar e desenvolvendo estratégias criativas para atrair "clientes".

Fazia parte desta etapa também aprender a calcular e a ter noções de custo, lucro e prejuízo. Isso era importante porque, a cada dia de venda, fazíamos o somatório dos gastos com base em notas fiscais de compra. Também contávamos o dinheiro arrecadado e finalizávamos com os cálculos para verificar se tínhamos alcançado lucro ou prejuízo.

Esta foi uma das etapas de maior envolvimento e empolgação. A cada jornada de vendas, era uma euforia para saber quem seriam os próximos sorteados para vender o produto. Foram formados pequenos grupos, que se alternaram ao longo das semanas.

Nas equipes, havia função para todos: um realizava a venda, o segundo ajudava a conferir o dinheiro e a passar troco e um terceiro auxiliava com a divulgação, atraindo os clientes.

Alguns alunos mais tímidos se recusaram nas primeiras tentativas, mas o envolvimento da escola foi tão grande que os colegas das outras turmas começaram a vir todos os dias, bem cedo, à nossa porta para “reservar” os geladinhos, que eram vendidos, sempre, no horário do recreio, e acabavam em poucos instantes.

Todos os dias de venda eram marcados por muita expectativa; os alunos disputavam para contar até as moedas arrecadadas.

No entanto, em dias mais chuvosos, as vendas caíam, e a turma passou a visualizar a ocorrência de prejuízos.

Mas eram necessárias persistência e perseverança para empreender, mesmo diante de adversidades. Assim, demos continuidade ao projeto.

Concomitante a essa etapa, outras atividades foram sendo realizadas. Com uma parte do dinheiro, comprei cédulas de brinquedo para dar suporte às atividades em sala de aula (problemas, cálculos matemáticos etc.).

Foi possível verificar que o trabalho com base no "concreto" gerou uma experiência mais significativa e efetiva. O uso do dinheiro tornava as atividades uma verdadeira brincadeira, e a aprendizagem começou a ocorrer de forma gradativa e leve.

Jogos como “O Pequeno Empresário”, uma versão simplificada do "Banco Imobiliário", agregaram mais significado às atividades matemáticas, estimulando noções de soma e subtração de valores e aguçando o raciocínio, a concentração e desenvolvendo a tolerância à frustração.

Aliando o trabalho a outras disciplinas, fizemos ainda uma "viagem histórica" para compreender a origem do dinheiro, sua evolução e produção no mundo e no Brasil. Falamos sobre escambo, processo de cunhagem e evolução cronológica do dinheiro no Brasil. Para isso, utilizei vídeos como recurso para as atividades.

Assim, os alunos conheceram um pouco do trabalho desenvolvido na Casa da Moeda, além de um passo a passo sobre como identificar cédulas falsas.

A história do dinheiro aguçou bastante a curiosidade das crianças, principalmente porque a maioria não conhecia as cédulas de R$ 1,00.

Pedi que conversassem em casa com os familiares sobre o tema. Muitos alunos acabaram descobrindo que os pais guardavam essas notas antigas, e as trouxeram para a escola para compartilhar o conhecimento com os outros colegas.

Em outro momento, partimos do questionamento “Dinheiro Nasce em Árvore?” para uma reflexão na roda de conversa sobre a importância do dinheiro em nossa vida e os sonhos que ele não compra. Temas como ética e valores também foram englobados nas discussões. 

Fé, saúde, paz e felicidade foram palavras apontadas pela turma.

Os alunos interagiram, discutiram, discordaram e, por fim, escolheram uma palavra que deveria ser colocada numa nuvem representando os sonhos que o dinheiro não compra. Fé, saúde, paz e felicidade foram palavras apontadas pela turma.

Trabalhamos ainda com as temáticas da economia doméstica e da economia sustentável, por meio das quais abordamos questões sobre reciclagem, sustentabilidade etc.

A culminância do projeto foi pensada para ser realizada na "Mostra do Conhecimento" da escola, evento muito esperado pelos alunos e pela comunidade escolar.

Por essa razão, demos início à organização e produção de materiais cerca de um mês antes do evento. Mesmo com as produções voltadas para a culminância, a venda dos geladinhos continuou até o encerramento do projeto.

A proposta para a culminância foi elaborada para que os alunos pudessem transmitir tudo aquilo que haviam aprendido e também para que mostrassem, na prática, como o empreendedorismo é possível e a educação financeira é a chave para um futuro melhor.

Na "Mostra do Conhecimento", os visitantes passaram por uma primeira etapa de exposição e explanação teórica. Em seguida, eram convidados a sacar dinheiro em nosso “caixa eletrônico”, para que pudessem interagir comprando produtos dos grupos de empreendedores.

Cada grupo teve de pensar no seu negócio, respeitando gostos e interesses. Coube a eles elaborar todas as etapas de criação, desde o nome até a forma de organização, distribuição das tarefas e execução. Os negócios ficaram assim divididos:

  • "Oficina Sustentável": produção de cofrinhos com garrafas PET.
  • "Bazar da Economia": roupas, brinquedos e acessórios que as crianças não usavam mais.
  • "Lanchonete Coma Mais e Pague Menos": alimentos preparados pelas crianças, e suas mães.
  • "Supermercado Ki Barato: os alunos ficaram responsáveis por confeccionar toda a estrutura do supermercado com material reciclado, além de fazerem estantes com caixas de papelão e construírem o caixa eletrônico.Também juntaram embalagens, colocaram os preços. 

Este foi o negócio que mais recebeu a participação dos pais, já que alguns trabalhavam em supermercados da região e auxiliaram os filhos trazendo anúncios, placas de preço, folhetos e estantes.

O dia da culminância foi o momento em que os alunos visualizaram, de forma ampla e interligada, tudo o que tinha sido abordado e trabalhado durante os dois meses.

Para muitos, era a primeira experiência de falar em público, o que gerou bastante ansiedade e nervosismo. Para outros, o momento era de euforia.

À medida que relatavam as experiências vivenciadas e executavam as atividades de compra e venda, eram nítidos o envolvimento, o comprometimento e a felicidade de todos.

No evento, tivemos participação significativa das famílias, que vieram contemplar e apoiar seus filhos. Em seus relatos, pais e professores demonstraram admiração por verem as crianças explicando os conceitos com tanta propriedade, destacando que os alunos estavam seguros de suas explicações. Nos relatos, diziam estar surpresos e que aprenderam coisas que nunca imaginaram aprender com os alunos.

Esse apoio e incentivo foram de fundamental importância, tendo contribuído ainda mais para a autoestima dessas crianças.

A avaliação esteve presente durante todo o processo de execução do projeto, pois entendo que ela precisa ocorrer de forma processual e diagnóstica.

Sendo assim, a cada etapa desenvolvida, uma análise da aprendizagem dos alunos era feita. Usava como base a observação dos relatos e o envolvimento da turma.

E, como avaliação final, a apresentação de todos os subtemas trabalhados e unificados na Mostra do Conhecimento realizada na escola.

Foi possível verificar um grande engajamento da turma, principalmente no momento de venda dos geladinhos. Essa iniciativa também despertou o interesse de alguns alunos, que começaram a pensar em vender algo para que pudessem poupar dinheiro.

A iniciativa ganhou amplitude, e alguns alunos de outras turmas começaram a vender outros produtos na escola, como palha italiana e brigadeiros.

O dinheiro sempre foi algo presente no cotidiano desses alunos. Muitos deles já auxiliavam os pais indo a padarias, mercearias etc.

No entanto, o dinheiro até aquele momento não era visto como algo que lhes pertencesse, pois a maioria não recebia mesada. Por isso, o processo de poupar e fazer render o dinheiro arrecadado gerou um sentimento de pertencimento, cuidado e responsabilidade. 

Eram visíveis nas atitudes da turma a alegria e a euforia nos momentos em que contávamos o dinheiro e víamos aquela quantia inicial aumentar.

A partir de pequenas atitudes dos alunos, como reduzir o consumo de balas para poupar o dinheiro recebido dos pais ou a atenção com a economia de energia e de água em casa, comprovou-se que os alunos passaram a compreender a importância do dinheiro em suas vidas, mas, muito mais do que isso, passaram a perceber o impacto de suas atitudes no futuro.

O projeto “Empreender para Compreender: educação financeira na prática” possibilitou não só aos alunos, mas especialmente a mim, a vivência com uma temática pouco comum na rotina da sala de aula, embora imersa por completo na vida pessoal.

Buscar alternativas para trabalhar este tema com as crianças foi um de meus maiores desafios. Tive de sair de minha zona de conforto, da sala de aula e da frente do computador para ir além.

Foram necessários muitos momentos de pesquisa, reflexão e de adaptação de conteúdos à realidade da sala de aula. Discutir e praticar o empreendedorismo entre crianças era algo que poucos acreditavam ser possível.

Dica!

O protagonismo dos alunos na decisão sobre quais produtos comercializar é fundamental nesta atividade, por serem eles mesmos os potenciais consumidores.

A vivência do “negócio” implica aprendizagens significativas e contextualizadas que, de outra forma, poderiam se perder com facilidade. Empreender, nesse contexto, significa “envolver-se” na aprendizagem necessária para o sucesso do empreendimento.

Conceitos como lucro, prejuízo e investimento são difíceis até mesmo para alunos de séries mais avançadas, mas podem ser compreendidos de forma concreta nesta prática.

O “dinheiro de mentirinha” pode ser facilmente produzido com um computador, acesso à internet e uma impressora, não havendo a necessidade de comprar essas cédulas.

Muito sobre a história do dinheiro e o empreendedorismo na escola pode ser pesquisado e encontrado na internet.

Este projeto sobre educação financeira pode ser executado por qualquer professor em sua realidade de sala de aula. Trata-se de um tema que pode ser adaptado a realidades diversas e que sempre será um assunto atual e importante, pois está intrinsecamente ligado à vida de todos.

Sendo assim, é mais do que possível abordar este tema na Educação, inclusive nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental.

A proposta não requer altos custos. Ela deve ser feita de acordo com o que cada comunidade tem a oferecer. O segredo é utilizar o potencial criativo de cada indivíduo e as peculiaridades de sua região para empreender. Com certeza, esse é o ingrediente mais importante para o sucesso do projeto.

Aos professores que utilizarem esta proposta como inspiração para desenvolver o próprio projeto, tenham certeza de que estarão proporcionando aos alunos uma ocasião para se tornarem protagonistas de sua aprendizagem, além de cidadãos conscientes das próprias atitudes e disseminadores desses ideais dentro de casa e da comunidade.