"Ao longo do Ensino Fundamental – Anos Finais, os estudantes se deparam com desafios de maior complexidade, sobretudo devido à necessidade de se apropriarem das diferentes lógicas de organização dos conhecimentos relacionados às áreas. Tendo em vista essa maior especialização, é importante, nos vários componentes curriculares, retomar e ressignificar as aprendizagens do Ensino Fundamental – Anos Iniciais no contexto das diferentes áreas, visando ao aprofundamento e à ampliação de repertórios dos estudantes. Nesse sentido, também é importante fortalecer a autonomia desses adolescentes, oferecendo-lhes condições e ferramentas para acessar e interagir criticamente com diferentes conhecimentos e fontes de informação." (BNCC, 2018, p. 60)

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As vidas secas que contam a nossa história: um projeto de leitura sobre identidade cultural

Área(s): Linguagens; Matemática.

Promover o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita dos alunos do 9º ano e relacionar a leitura à cultura local.

Componente(s):

Língua Portuguesa; Matemática.

Quando:

A qualquer momento do ano letivo.

Materiais:
  • Livro "Vidas Secas”, de Graciliano Ramos.
  • Obras de arte:

    • - “Os Retirantes”, de Cândido Portinari;

      - “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga;

      - “Vida Maria”, de Márcio Ramos;

      - “A triste Partida”, de Patativa do Assaré.

Habilidades trabalhadas:

EF69LP46; EF69LP49; EF67LP27; EF67LP28; EF89LP32; EF89LP33; EF69LP50; EF69LP52; EF06MA33; EF07CI07;

Professor(a) responsável:

Daiane da Costa Barbosa.

Escola:

Escola Municipal Major José Tenório de Albuquerque Lins, Boca da Mata (AL).

O que é:

O presente trabalho foi um projeto de leitura do livro “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, que visou promover o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita de alunos do 9º ano.

A partir do diagnóstico feito por meio de textos individuais, no início do ano, constatou-se uma capacidade de escrita aquém do nível esperado para a série em questão.

A estratégia de enfrentamento foi baseada na ideia de que a habilidade de leitura com autonomia exerce papel preponderante no desenvolvimento pleno da escrita e no exercício da cidadania.

Desse modo, utilizou-se o livro mencionado como resgate e valorização da cultura nordestina, com atividades de compreensão dos capítulos, além de obras artísticas que retratam a mesma temática: a pintura “Os Retirantes”, de Cândido Portinari; a música “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga, o poema em cordel “A triste Partida”, de Patativa do Assaré, e o curta-metragem de animação “Vida Maria”, de Márcio Ramos.

Essas outras obras foram analisadas para que identificássemos pontos de contato com a prosa de Graciliano Ramos e, desse modo, ampliássemos a compreensão sobre o texto.

A avaliação levou em conta as produções de textos, as apresentações orais, musicais e teatrais, além dos desenhos artísticos produzidos durante uma exposição cultural na qual os alunos apresentaram os conhecimentos construídos à comunidade escolar.

O resultado da escrita se revelou tímido do ponto de vista quantitativo. No entanto, isso não configurou fator negativo quando consideramos qual foi o ponto de partida.

Além disso, a meta traçada foi o desenvolvimento da habilidade de leitura e, nesse caso, houve um avanço da maioria dos alunos, algo comprovado em testes de leitura realizados posteriormente e numa avaliação estadual, na qual os alunos obtiveram a maior pontuação do município: 65,1% de acertos em proficiência de leitura. 

Como Fazer:

A ideia foi bem-aceita desde o início, mas quando nos dedicamos à leitura dos capítulos, a empolgação começou a diminuir. Os alunos não estavam acostumados a esse tipo de aula, e o ato de ler por longos períodos causava certa dispersão e até desinteresse na turma.

Reduzi, então, o ritmo, intercalei leitura e discussão dos capítulos e, assim, consegui maior participação e envolvimento dos alunos.

Fizemos aulas de consulta ao dicionário, pois havia um vocabulário muito peculiar da nossa região e que, em sua maioria, não era conhecido do grupo.

Essa descoberta foi muito positiva. Por isso, achei propício incluir a leitura de textos em cordel, a fim de resgatarmos conhecimentos sobre a cultura nordestina.

Dentre os cordéis, o poema “A triste Partida”, do cearense Patativa do Assaré, gerou bastante envolvimento dos alunos, tanto pela riqueza da descrição da cena quanto pelo reconhecimento da temática dos retirantes.

Além disso, os meninos ficaram surpresos ao saberem que o escritor, que criava rimas perfeitas e ricas de significado, havia frequentado a escola por pouquíssimo tempo.

Houve, porém, muito estranhamento quando da leitura de um poema escrito em linguagem popular e desprivilegiada socialmente. Tivemos comentários como “Nunca vi um texto desses em aula de Português!”.

Foi necessário iniciar uma conversa sobre preconceito linguístico para conscientizar os alunos de que o valor daqueles versos não estava no tipo de linguagem usada, mas, sim, na sua expressão e significação.

Discutimos sobre variedade linguística e os efeitos daquela escrita numa sociedade letrada. Mas, acima de tudo, a leitura do poema foi marcante porque os jovens viram o tema tratado num cordel, o que facilitou o entendimento sobre a obra clássica. Além disso, os alunos identificaram o processo migratório como um traço marcante na cultura da região.

A descoberta de que Patativa do Assaré havia publicado vários livros e de que ele continuava sendo referência na literatura popular, trouxe aos olhinhos dos alunos um brilho de esperança, um entendimento de que o sucesso não é um sonho impossível de ser alcançado.

Pensada inicialmente para ampliar o conhecimento vocabular regional, a inclusão dos textos em cordel contribuiu significativamente para a compreensão do tema tratado na obra clássica.

Percebi, porém, que não seria viável continuarmos apenas com a leitura dos capítulos. Era necessário intercalar outras leituras, obras que tratassem da cultura nordestina, com autores e artistas que mostrassem a riqueza da região sob outros pontos de vista.

Ler “Vidas Secas” já não atendia à necessidade de conhecimento da nossa história ainda tão atual, tão viva. Assim, já não se tratava de projeto de leitura de um livro, mas, sim, de projeto de valorização e resgate da cultura local.

Pensada inicialmente para ampliar o conhecimento vocabular regional, a inclusão dos textos em cordel contribuiu significativamente para a compreensão do tema tratado na obra clássica.

Desse modo, pesquisei obras que tratassem da temática dos retirantes e da cultura nordestina. Lembrei da pintura “Os Retirantes”, de Cândido Portinari. Pesquisei, estudei a obra e planejei algumas aulas para a análise do quadro, buscando pontos de encontro com o livro de Graciliano.

Projetei a pintura no quadro e pedi aos alunos que observassem a paisagem, a expressão facial e a aparência física dos retirantes, bem como todos os elementos ali presentes.

Fiquei surpresa quando uma aluna notou que a cena do quadro acontecia de madrugada, exatamente no mesmo período em que Fabiano e sua família, de “Vidas Secas”, partiram em retirada no último capítulo do livro.

As ossadas pelos caminhos também foram observadas como um elemento comum às obras. Perguntei o que significava a presença de tantos urubus sobrevoando os retirantes, e os alunos conseguiram associar a imagem à presença da morte.

Foi uma aula muito produtiva. Porém, quando solicitei que os estudantes fizessem as observações no caderno, os textos não saíram tão analíticos quanto haviam sido os comentários em sala.

Penso ser absolutamente compreensível que a habilidade de produzir sentidos, ou seja, ler com autonomia, preceda a habilidade de organizar as ideias no papel.

Entretanto, já não eram mais textos com informações do senso comum. Começavam a surgir frases mais organizadas, com informações que não se baseavam no “achismo”, mas, sim, num conhecimento sociocultural legitimado.

Ao voltarmos para o texto de Graciliano, a narrativa já não parecia tão densa. Percebi, com alegria, alguns alunos já lendo e compreendendo o conteúdo com mais autonomia, compreendendo melhor a saga dos retirantes.

Outra obra com a mesma temática foi o curta-metragem “Vida Maria” (2006), do animador Márcio Ramos. Solicitei aos alunos que observassem, mais uma vez, pontos de encontro com “Vidas Secas”.

Contudo, apesar de as duas obras retratarem a vida no sertão nordestino, os alunos não conseguiram apontar muitas semelhanças, como havia acontecido quando viram a obra de Portinari. Fiz, então, uma analogia entre a dureza da terra e das pessoas.

As “Marias” vivem a mesma vida sofrida. Isso também acontece em “Vidas Secas”. O primeiro e o último capítulos estão relacionados, dando a ideia de que a história de Fabiano já aconteceu a outros “Fabianos”.

Solicitei que registrassem no caderno essas observações, anotando cada comentário como forma de usar a escrita para organizar as informações e a experiência de leitura.

Ainda que os alunos não tivessem notado muitas semelhanças, percebi novamente como o estudo de outra obra com a mesma temática de “Vidas Secas” ampliava o entendimento sobre o livro. Quando voltávamos a ele, a leitura fluía com mais tranquilidade. Assim, a prosa de Graciliano Ramos foi ganhando mais significado.

Senti que era o momento de conhecermos o escritor. Planejei a leitura de uma entrevista dele e assistirmos juntos a um documentário sobre sua vida.

O documentário foi um momento importante para entendermos como a história de vida havia influenciado a profissão e a obra em estudo.

Tivemos acesso a tantas informações importantes que solicitei a produção de um texto. Aproveitei para falar sobre o gênero biografia, suas características e usos na sociedade.

Para tratar dessas produções, foram necessárias aulas específicas para discutir questões de escrita. Então, a cada duas semanas, fiz aulas de correção textual coletiva. Selecionei textos problemáticos e razoáveis (sempre com diferentes tipos de desvios) para que analisássemos os pontos críticos e os acertos, sempre solicitando à turma que reescrevesse o conteúdo, fazendo as correções necessárias.

Todas essas obras ampliaram a visão sobre a cultura do povo nordestino, mas principalmente ajudaram a ler Graciliano numa perspectiva ampliada.

Tive o cuidado de expor tanto textos bons quanto ruins para que os alunos com dificuldades não desanimassem.

Outra leitura foi a letra de “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga. Fiquei contente com a observação de um aluno sobre a semelhança entre o primeiro verso da música e o último capítulo de “Vidas Secas”, quando Fabiano, ao observar a caatinga amarela, percebeu que já era tempo de se retirar novamente.

Na canção, o enunciador diz que vê a terra ardendo como em fogo. O aluno disse: “Não parece que é o Fabiano quem está cantando a canção? Ele poderia ter dito essa frase, sentado no banco do copiar”.

Todas essas obras ampliaram a visão sobre a cultura do povo nordestino, mas principalmente ajudaram a ler Graciliano numa perspectiva ampliada.

Porém, as andanças entre textos de mesma temática começaram a cansar os  alunos. Ouvi comentários do tipo:  ”Vamos estudar outra coisa professora, isso já está bom”. Percebi, então, que era o momento de propor uma atividade diferente.

Agendei, assim, uma aula de campo em Palmeira dos Índios, cidade próxima da nossa e onde Graciliano Ramos tinha passado boa parte de sua vida. Lá, visitamos sua “Casa Museu”.

Busquei consolidar os conhecimentos construídos ao longo do projeto. Foi gratificante ver os alunos reconhecendo os personagens do livro nas esculturas, pinturas e nos objetos que faziam referência ao livro “Vidas Secas”.

Na aula seguinte, solicitei o preenchimento de uma ficha com a narração e a descrição do que haviam aprendido com a viagem, num exercício de organização e escrita.

Nessa produção textual, muitos usaram uma linguagem pessoal, demonstrando sua satisfação com o que tinham vivenciado.

Como sair da cidade não é comum à maioria da turma, a visita ao museu se tornou ainda mais significativa. A experiência também fortaleceu minha relação com muitos alunos, o que ajudou em nosso convívio.

As aulas do projeto foram produtivas tanto para o desenvolvimento da habilidade de leitura e escrita quanto para a construção, nos alunos, de uma identidade cultural. Mas faltava algo. Talvez um cartaz, um mural para serem compartilhados com outros alunos. Fui incentivada a organizar uma exposição ou um seminário. Mesmo insegura, convidei alguns professores e, juntos, montamos uma exposição cultural.

Com o apoio do professor de Matemática, os alunos fizeram gráficos sobre a saída de moradores para outras cidades desde 2015, ano em que a empresa de cana de açúcar fechou. 

Houve alunos que, na semana anterior à apresentação, foram à escola pela manhã e à tarde para concluir a arrumação do pátio. Todos demonstraram muita satisfação por estarem ali.

Em Ciências da Natureza, a turma estudou a vegetação do sertão nordestino e as plantas típicas da nossa região, com destaque para o juazeiro, árvore muito mencionada na obra.

Em Artes, montaram um painel gigante no pátio da escola com duas imagens. Uma de Fabiano e outra de Sinhá Vitória e os dois meninos. Ao lado de cada um dos painéis, havia um trecho do livro destacando a personalidade deles.

Os alunos confeccionaram cactos decorativos com garrafas pet e vários painéis com desenhos ilustrativos do livro e das obras artísticas estudadas. Montaram ainda uma apresentação musical e outra teatral.

Cada estudante se envolveu com o que conseguia fazer melhor. Descobrimos artistas de todo tipo: desenhistas excepcionais, pintores, artesãos, dançarinas, cantores, atores e atrizes, oradores, decoradores de ambientes e até uma bailarina.

Houve alunos que, na semana anterior à apresentação, foram à escola pela manhã e à tarde para concluir a arrumação do pátio. Todos demonstraram muita satisfação por estarem ali.

Foram quase dois meses de preparação. Eu estava nervosa porque nunca tinha feito algo para um público tão numeroso. Os alunos ficaram no pátio dando suporte às equipes que se apresentariam. Todos se envolveram e ficaram orgulhosos em ser parte do que estava acontecendo.

Fizemos duas exibições à tarde, uma à noite e outra pela manhã. Depois das apresentações orais, tivemos uma pequena peça teatral com os personagens da história.

Escolhemos cenas mais alegres para envolver a plateia. Por último, houve a apresentação de dança, com duas músicas nordestinas: “O Pulo da Gaita” e “Asa Branca”, de Sérgio Campelo e Luiz Gonzaga, respectivamente.

As dançarinas se vestiram de lavadeiras. Foi uma referência à famosa fala de Graciliano, em que comparou a arte de escrever ao trabalho das lavadeiras.

Foi um dia diferente na escola. Um dia que ficou marcado não só para meus alunos, mas para todos que estavam ali presentes. Foi uma atividade incomum. Como consequência, o resultado também foi incomum. Muitos olhinhos de surpresa a cada apresentação. Mas o desejo de todos, ainda que ninguém o exprimisse, era de que aqueles momentos se tornassem cada vez mais comuns no dia a dia da nossa escola.

Outras ideias:

Temas paralelos que podem ser trabalhados e/ou aprofundados: identidade cultural da região Nordeste, preconceito linguístico, linguagem literária em prosa e em cordel, leitura de texto não verbal, dados estatísticos, vegetação do sertão alagoano etc.

O projeto pode ser replicado, principalmente em escolas do Nordeste, além de servir de inspiração para trabalhos semelhantes em outras regiões brasileiras, visando ao resgate e à valorização da identidade cultural e ao exercício da cidadania.