"A BNCC do Ensino Fundamental – Anos Iniciais, ao valorizar as situações lúdicas de aprendizagem, aponta para a necessária articulação com as experiências vivenciadas na Educação Infantil. Tal articulação precisa prever tanto a progressiva sistematização dessas experiências quanto o desenvolvimento, pelos alunos, de novas formas de relação com o mundo, novas possibilidades de ler e formular hipóteses sobre os fenômenos, de testá-las, de refutá-las, de elaborar conclusões, em uma atitude ativa na construção de conhecimentos. Nesse período da vida, as crianças estão vivendo mudanças importantes em seu processo de desenvolvimento que repercutem em suas relações consigo mesmas, com os outros e com o mundo." (BNCC, 2018, p. 58)

Podcast

Ouça o podcast sobre os Anos Iniciais do Ensino Fundamental.

Estante Estilizada de Matemática: da abstração da Matemática à “personificação” da Geometria

Área(s): Matemática.

O objetivo desta prática foi possibilitar aos alunos o aprendizado sobre figuras geométricas, construindo os vínculos cognitivos necessários às abstrações matemáticas e espaciais e transformando, de forma leve, os conteúdos em conhecimento e, assim, contribuindo para a manutenção da frequência escolar.

Componente(s): Matemática.
Quando: No início do ano letivo, durante cerca de um bimestre.
Materiais:
  • lápis diversos, caderno, régua e itens de artes;
  • tens para confecção de ferramentas de apoio ao ensino (EVA, plástico, cola, isopor etc.);
  • mobiliário apropriado para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, que pode ser confeccionado com a participação de alunos, familiares e professores.

Habilidades trabalhadas: EF01MA02; EF01MA03; EF01MA04; EF01MA06; EF01MA08; EF01MA09; EF01MA11; EF01MA13; EF01MA14.
Escola: EMEIF Américo Falcão, Lucena (PB).
Professor(a) responsável: Gerson de Andrade.

O que é:

A prática focada aqui diz respeito à adequação do ambiente da sala de aula aos recursos pedagógicos essenciais e a metodologias mais dinâmicas, baseadas no concreto, no protagonismo dos alunos e no desenvolvimento de sua autoestima.

Esta prática mostrou que atitudes relativamente simples, como mudanças no ambiente, na disponibilização de recursos e em práticas motivadoras, podem produzir resultados altamente relevantes na aprendizagem.

O projeto não se limitou a atividades baseadas numa “estante”. Tratou-se de um conjunto de ações realizadas em diversos campos das práticas educacional, social, artística e ambiental, visando à superação de um enorme deficit de aprendizagem da turma do 2º ano B.

Essa turma foi formada no final do 1º bimestre, proveniente de uma classe superlotada. A disparidade de saberes e o elevado número de alunos numa mesma sala (39) inviabilizavam um ensino de qualidade. Assim, eram prejudicados os alfabetizados e aqueles que ainda necessitavam de alfabetização.

Assumi a recém-formada turma do 2º B, que carregava a imagem de ser uma classe de baixa aprendizagem, baixa frequência, falta de concentração, baixa autoestima etc.

Os primeiros olhares de socorro vindos dos alunos exigiram que eu assumisse a responsabilidade. Estávamos diante de um gravíssimo quadro de dificuldades em Linguagem e Matemática.

Nenhum aluno chega ao 2º ano nessa situação sem que tenha sido vítima da desassistência coletiva. A própria condição social dos estudantes denuncia essa realidade. Além de não saberem ler, essas crianças, em geral, não têm lápis e cadernos, usam roupas surradas e apresentam um desleixo flagrante.

Por isso, como estratégia, procurei oferecer aos alunos mimo e carinho, mas também algumas exigências. Logo, eles começaram a responder positivamente a esses cuidados.

A escola é um espaço de produção de saberes e transformação de realidades – e o saber muda a realidade do professor, que se torna uma pessoa melhor e diferente para os alunos. Estes, pelo aprendizado, fazem desabrochar a consciência de sua existência.

Foi o que vivemos com essa turma. Com base numa rotina rígida e marcada pela responsabilidade, conseguimos despertar esses jovens.

Vivemos juntos algumas transformações importantes, como a reforma da sala de aula e a conquista de materiais adequados, entre eles, a "Estante Estilizada de Matemática", criada por um "maluco" a partir de lixo reciclável. Também mudamos a forma de ensinar e cativar os alunos, mostrando a importância do saber e dos conhecimentos matemático e linguístico na superação de sua dura realidade de vida.

Um simples cuidado, um singelo afago; um lápis de R$ 0,50, algumas noites recortando, colando e pintando podem transformar a vida de um aluno para melhor.

A metodologia, a didática e o planejamento não podem explicar o que só o amor pode edificar. Esse material pedagógico não foi um recurso educacional, mas, sim, um instrumento de resgate humano – resgate dos alunos e, principalmente, meu.


Como fazer:

Pelo curto prazo que tínhamos, foram necessários o estabelecimento de uma rotina rígida e a pactuação de combinados visando, fundamentalmente, conquistar maior frequência escolar – individual e coletiva. Isso porque o aluno que falta tem sua aprendizagem comprometida, além de comprometer a aprendizagem da turma.

Tínhamos também de resolver a questão da falta de lápis e cadernos. Nos primeiros dias, 60% dos alunos não dispunham desses materiais. De cara, comprei uma caixa de lápis, sabendo que o problema dos cadernos demoraria mais tempo para ser equacionado.

No médio prazo, foi preciso ensinar os alunos a escrever, para que conseguissem avançar em Língua Portuguesa e em Matemática. Até aquele momento, essas crianças tinham escrito poucas linhas. Estavam, inclusive, com a musculatura da mão travada, o que, por si só, dificultava a fluência e a evolução da escrita. Foram necessários muitos exercícios motores para evitar sofrimento nas aulas.

No longo prazo, foi necessária uma reorganização cognitiva e social, para que a aprendizagem fosse prazerosa, independentemente da disciplina ou do conteúdo.

Geograficamente isolados por um rio, como se ainda vivessem no século XVI, os alunos apresentavam uma ignorância natural, resultado também da baixa importância que as famílias davam à educação.

O diagnóstico em Língua Portuguesa em Matemática teve como primeiro instrumento o estudo dos cadernos dos alunos – caóticos, em todos os aspectos. Em geral, as crianças tinham os dois cadernos (o de casa e o de sala), ambos em péssimo estado. Escolhi um deles para o trabalho e guardei o outro como parâmetro de evolução.

No que diz respeito à Matemática, os alunos não sabiam fazer os cálculos mais básicos e a identificação da sequência numérica era limitada. A escrita dos números era irreconhecível, com o signo produzido não correspondendo ao algarismo desejado.

Linhas, páginas e a respectiva ordem não existiam. Os alunos escreviam em qualquer página, inclusive com conteúdos de cabeça para baixo na folha.

As crianças desconheciam as figuras geométricas e não sabiam diferenciar sólidos de planos geométricos. Também não reconheciam as estruturas de dezena e unidade para criarem uma simples adição.

O diagnóstico inicial foi a referência para o trabalho. O primeiro passo, e o mais complicado, foi a escolha dos instrumentos para a realização das atividades.

Como os materiais existentes no mercado não atendiam às necessidades da aprendizagem, foi necessária a fabricação de uma peça exclusiva: uma estante em PVC reciclado.

A estante, cuja construção levou quatro dias, tinha duplas face e função. Com 1,40 metro de altura por 1 metro de largura e 50 centímetros de profundidade, a estante foi confeccionada “fora do prumo” para causar mais interesse em relação à sua estética.

Nos outros quatro dias, foram produzidos e emborrachados os números e as formas geométricas em proporções reais (3D).

Ao chegar na escola, a "Estante Estilizada de Matemática" provocou comoção em todos que a viram. Além de bonita, ela aguçava (deliberadamente) a curiosidade por sua forma geométrica diferente.

Ela estava protegida por uma capa que fechava um de seus lados (o do jogo), enquanto o lado da "Estante de Formas Geométricas" tinha uma capa de plástico transparente, possibilitando a observação do material. Num primeiro momento, contudo, ninguém poderia tocá-la. Tal distanciamento foi deliberado, pensado com base em princípios behavioristas.

Os materiais foram disponibilizados aos alunos três dias depois de sua chegada. Uma das estratégias foi estabelecer uma frequência mínima dos alunos para que tivessem o direito de sua utilização. A outra, também importante, foi a necessidade do cumprimento de regras, como bom comportamento e execução das tarefas de sala e de casa.

O primeiro dia de utilização do jogo foi um "Deus nos acuda". A sala de aula virou um auditório de competição, mesmo. No início, as regras do jogo foram pouco respeitadas, não por problemas comportamentais, mas, principalmente, por falta de costume.

O primeiro objetivo foi alcançado: a frequência. Alguns alunos que faltavam constantemente, ao saber das atividades, fizeram-se mais presentes.

Por outro lado, o desafio ficou mais latente. No jogo da primeira face da estante, que exigia o somatório simples das pontuações, os alunos demonstraram dificuldades nos cálculos.

Diante, portanto, da necessidade de um planejamento direcionado, foram realizadas aulas de adição básica, com duas casas decimais, sem reserva. Utilizamos a “armação” do cálculo para resolver a operação.

No esforço de superação de dificuldades não observadas no início do projeto e para manter os alunos estimulados, confeccionamos outros materiais de apoio.

Os alunos realizaram todas as atividades satisfatoriamente. Essa atitude favoreceu as demais atividades de utilização da "Estante Estilizada de Matemática".

As atividades em sala de aula e os jogos tiveram boa audiência. Os alunos realizaram todas as atividades satisfatoriamente. Essa nova atitude adquirida favoreceu as demais atividades de utilização da "Estante Estilizada de Matemática", assegurando, assim, a aprendizagem básica das operações de adição.

Um dos lados da estante tinha um jogo no estilo “Programa Silvio Santos”, em que três bolinhas eram lançadas num plano inclinado repleto de palitos, que dificultavam seu trajeto até o fim do percurso. Tendo passado os palitos, a bolinha caía numa das várias casinhas, com seus respectivos pontos.

A turma foi dividida em grupos de três alunos. Cada um lançava uma bolinha para alcançar certa pontuação. No entanto, essa pontuação só seria validada se os três do grupo conseguissem acertar o somatório dos pontos conquistados por eles.

Cada grupo realizou seis adições intercaladas por partidas de três rodadas, possibilitando aos mais competitivos conferir as pontuações das operações dos grupos concorrentes. O tempo mínimo para essa atividade foi de 45 minutos.

A segunda face da estante era composta de diversas prateleiras com muitas formas geométricas (planas e sólidas), coloridas e de diversos tamanhos.

Nesse espaço, o conhecimento diferenciado veio do acesso real às formas geométricas e do "domínio" de suas características. No entanto, a fixação do nome de cada forma geométrica se deu pela “personificação” de cada estrutura. Ou seja, cada aluno "adotou" uma figura da prateleira, e o nome daquela figura acabou sendo agregado ao nome do aluno que a havia escolhido.

Exemplo: o aluno João Pedro escolheu como sua forma geométrica o cilindro prata. Logo, seu nome na aula de Geometria passou a ser João Pedro Cilindro Prata. Essa estratégia tornou as formas geométricas mais próximas dos alunos.

Para evitar comparações pejorativas (bullying) que associassem os alunos às formas escolhidas, foi necessária uma certa vigilância. Esse cuidado foi aceito por todos.

As aulas/jogos se consolidaram como objeto de desejo permanente dos alunos. Mas, para que acontecessem, foi necessário o cumprimento de regras.

Com isso, as aulas se tornaram leves e descontraídas, ainda que as partidas tenham sido acaloradas. Meu desafio foi administrar um auditório eufórico sem perder o foco da proposta.

Antes, o desespero era latente nos olhinhos dos alunos, por não saberem juntar uma consoante e uma vogal, somar um número a outro ou reconhecer uma figura geométrica.

Percebi como o desconhecimento e a impossibilidade de realizar uma tarefa machucavam os alunos. Com o tempo, isso mudou. O sofrimento deu lugar à esperança.

Os resultados superaram as expectativas num curto espaço de tempo, particularmente com 15 dos 19 alunos. Os demais avançaram com mais dificuldade. Desses quatro alunos com gravíssimos problemas orais e de escrita, dois reduziram sua limitação. Os outros dois, com graves condicionantes de comportamento, conseguiram se fazer mais presentes e comportados, passo importante para a evolução da aprendizagem.

A frequência às aulas, que era em torno de 50% a 60%, ultrapassou os 90%. Para que essa marca fosse alcançada, foi necessário também um trabalho com as famílias. Em certas situações, a ausência dos alunos era mais resultado da negligência familiar do que do desinteresse das crianças. Alguns casos tiveram de ser encaminhados ao Conselho Tutelar, uma vez que, mesmo depois de reunião como os pais, a desassistência prosseguiu.

O primeiro e mais fundamental parâmetro para confrontar o diagnóstico inicial foi o caderno. Retornei a ele para comprovar a eficiência da proposta. Encontrei, ao final, cadernos organizados, preservados, com ordenamento e sequência de registros e com muitas e muitas páginas escritas e trabalhadas. As letras se tornaram legíveis, os números e os ordenamentos, compreensíveis.

A grande conquista da aprendizagem foi a conscientização do alunos sobre a necessidade de fazerem cálculos mentais rápidos para o jogo ou para as atividades escolares (na sala de aula e em casa).

Definitivamente, o saber se consolidou na turma, precondição para novos passos, visando recuperar o tempo perdido e tornar os conhecimentos da turma equivalentes ao das outras classes do 2° ano.

Três instrumentos de verificação formal serviram para a observação da apropriação dos conteúdos ao longo do projeto. Foram eles:

  • Avaliação Contínua para a percepção das conquistas cognitivas e para que as partidas fossem ágeis e fluentes, na perspectiva da Matemática.
  • Avaliação formal escrita e oral dos conteúdos curriculares como instrumento de ensino, elevando de 3,9 para 6,9 as notas médias de 90% dos alunos.
  • Avaliação em larga escala pelo programa MEC-Mais Alfabetização.

Com base nos parâmetros desse programa do Ministério da Educação, verificamos que 100% dos alunos alcançaram todos os pontos dos quesitos relacionados às questões de formas geométricas. Nos casos de cálculos simples de dois algarismos, observamos avanços em 70% dos alunos.

Apesar do bom aproveitamento dos estudantes em relação à linguagem matemática, outros fatores limitaram a pontuação, com as dificuldades de interpretação dos problemas pela baixa compreensão textual em Língua Portuguesa.

O deficit de conhecimento dos alunos da rede pública impõe ao docente uma carga de responsabilidade social e psicológica gigantesca.

Todos os fatores que levaram os alunos dessa faixa etária (2º ano) ao caos cognitivo são latentes, presentes e exponencialmente amplificados com o passar dos anos. O 2º ano é o limite para a superação desses problemas.

Este momento caótico, que para muitos é uma tortura, para outros é o ambiente adequado para deixar aflorar a sensibilidade necessária à percepção da necessidade do outro. Pior que o desafio ao profissional será o futuro desses alunos se o responsável por mudar essa realidade cruzar os braços. Ao professor, só resta uma alternativa: reformular-se.

Saiba mais

O uso de materiais concretos nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental é crucial para o sucesso do ensino e da aprendizagem. Nesta prática, utilizei sólidos geométricos que podem ser construídos pelo professor com a participação dos alunos.

Mas, além dos sólidos geométricos, há uma infinidade de materiais de apoio concretos que podem e devem ser usados.

Os jogos são elementos não apenas motivadores para os alunos, mas também ferramentas de ensino, principalmente quando se deseja fixar conhecimentos e práticas, pois a repetição e a memorização se dão de forma natural enquanto se joga.

A diagnose inicial é fundamental, como se viu nesta prática, para a delimitação das atividades e a elaboração de avaliações corretas no decorrer do processo.