"A BNCC do Ensino Fundamental – Anos Iniciais, ao valorizar as situações lúdicas de aprendizagem, aponta para a necessária articulação com as experiências vivenciadas na Educação Infantil. Tal articulação precisa prever tanto a progressiva sistematização dessas experiências quanto o desenvolvimento, pelos alunos, de novas formas de relação com o mundo, novas possibilidades de ler e formular hipóteses sobre os fenômenos, de testá-las, de refutá-las, de elaborar conclusões, em uma atitude ativa na construção de conhecimentos. Nesse período da vida, as crianças estão vivendo mudanças importantes em seu processo de desenvolvimento que repercutem em suas relações consigo mesmas, com os outros e com o mundo." (BNCC, 2018, p. 58)

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Enfrentando os desafios da vida, mesmo que às escuras, tendo a Matemática como aliada

Área(s): Matemática.

Esta prática se propôs a estabelecer uma ponte entre a Matemática e as atividades cotidianas de uma pessoa cega ou de baixa visão, de modo a contribuir para sua autonomia e independência.

Componente(s): Matemática.
Quando: Ao longo do ano letivo (durante aproximadamente 3 meses).
Materiais:
  • aparelho para aferir a pressão arterial (com sintetizador de voz);
  • termômetro (com sintetizador de voz);
  • balança digital (com sintetizador de voz) e balança mecânica de braços iguais;
  • calculadora (com sintetizador de voz);
  • fita métrica adaptada;
  • papéis para origami;
  • Soroban adaptado para cegos;
  • rolete marcador de costura;
  • toalha de banho e/ou de rosto.

  • Habilidades trabalhadas: EF04MA03; EF04MA18; EF04MA20; EF04MA23; EF05MA03; EF05MA07; EF05MA17
    Escola: Instituto Benjamin Constant, Rio de Janeiro (RJ).
    Professor(a) responsável: Tania Maria Moratelli Pinho.

    O que é:

    Escola centenária, o Instituto Benjamin Constant é voltado para a educação e o ensino de pessoas deficientes visuais, cegas ou de baixa visão.

    Um de seus desafios atuais é encontrar estratégias para atender também a estudantes com outros comprometimentos além do sensorial da visão. Isso porque, a cada ano, tem aumentado muito o número de matrículas de alunos com esse perfil.

    Dos 23 alunos participantes do projeto-piloto, 15 eram cegos e nove apresentavam baixa visão. Desse último grupo, cinco tinham também outros comprometimentos além do sensorial da visão. Eram alunos do 5º ano, com idade média de 15 anos.

    Para este projeto, não fiz um diagnóstico de aprendizagem estruturado, com questões previamente formuladas. Minha estratégia foi investigativa, na forma de conversa com os estudantes, com perguntas sobre os conteúdos de Matemática trabalhados em anos anteriores.

    As respostas foram decepcionantes. Constatei que eram muito grandes as falhas de conteúdos em tópicos como unidades de medida, ideias das operações, frações, números decimais e geometria plana e espacial. Os alunos não sabiam diferenciar um quadrado de um triângulo.

    Para eles, a Matemática era de difícil entendimento e de pouca aplicabilidade. Além disso, tinham muita dificuldade de leitura em "Braille", uma vez que, em relação à Matemática, exige-se a utilização do "Código Matemático Unificado Braille para a Língua Portuguesa", que não havia sido trabalhado pela escola nos anos anteriores.

    Percebi também que os estudantes pouco sabiam sobre a organização de materiais. Aproveitei, então, para conversar com os estudantes cegos sobre suas atividades diárias e sobre os instrumentos de aferição da temperatura corporal e medição de comprimentos e de massa, entre outros. Todos foram unânimes em afirmar que só conheciam o termômetro, mas que, mesmo assim, era sempre uma pessoa que enxergava a responsável por sua manipulação. Um estudante me disse que nunca havia colocado suas mãos num ovo; deles, só conhecia o sabor.

    Quando perguntei a eles sobre como era a arrumação de seus armários em casa, a resposta foi semelhante à resposta sobre o termômetro e à informação sobre o ovo, ou seja, esses alunos estavam alijados de vivências do cotidiano.

    Eles precisavam, por isso, com urgência, receber algo para minimizar a falta de autonomia e independência. Muitos, inclusive, não conseguiam sequer sair da sala sozinhos. Precisavam da ajuda de algum colega que enxergasse para se locomoverem.

    A realização do diagnóstico inicial e as constatações foram preponderantes para o desenvolvimento de um projeto que estabelecesse uma ponte entre as atividades diárias e a Matemática.

    Este foi o nosso foco para 2018, algo bem diferente do que já havia sido realizado na escola em anos anteriores.

    Como fazer?

    A parte física do projeto foi realizada na forma de oficinas, no contraturno das aulas. O local escolhido foi a própria sala de aula. Todos os estudantes das três turmas do 5º ano foram convidados a participar. Houve adesão total – e eu nem era a professora de Matemática deles!

    As oficinas aconteceram duas vezes por semana, durante duas horas. Cada oficina atendeu a 12 estudantes. O trabalho foi realizado entre os meses de março e junho, com um total de 15 encontros.

    Quando chegou a vez de selecionar os materiais que seriam utilizados, deparei com uma situação preocupante. Havia falta de recursos financeiros para a compra de aparelhos de pressão arterial, termômetro e balança, todos com sintetizador de voz.

    Uma professora, cega, emprestou o termômetro e o aparelho de pressão. Consegui comprar a balança. Eu já tinha a calculadora com sintetizador de voz, usada anteriormente com outras turmas. Também tinha a fita métrica adaptada.

    Problema superado, parti para a definição dos conteúdos de Matemática. Selecionei duas situações cotidianas: o uso de materiais e a organização de um armário.

    Os conteúdos de Matemática selecionados foram unidades de medida (comprimento, massa e temperatura), operações com calculadora, uso das memórias, geometria, geometria não plana e fração, utilizando para tal o origami.

    As oficinas tiveram início com a fala de uma professora cega. Ela relatou aos alunos a necessidade de aprenderem atividades do cotidiano para que alcançassem autonomia e independência.

    Em seguida, ela abordou a importância de conhecerem instrumentos com sintetizador de voz para não precisarem da ajuda de um vidente na realização de pequenas tarefas. Ela comentou sobre a importância de uso da calculadora, a organização do dinheiro numa carteira e a prática de hábitos de higiene.

    Na dinâmica, apresentei como funcionavam e o que expressavam o termômetro, a balança, a calculadora e a fita métrica adaptada.

    Foram necessários seis encontros para as explicações sobre o uso dos instrumentos selecionados. Antes de cada encontro, eu descrevia seu funcionamento e falava sobre sua utilidade. Ao final, abria espaço de dez minutos para uma discussão sobre o assunto. Em seguida, iniciava o "diálogo" entre a Matemática e o instrumento.

    O momento mais significativo dessa primeira parte do projeto foi quando os alunos perceberam o contraste entre situações anteriores, de inoperância, e a perspectiva de autonomia a partir das informações que estavam recebendo.

    As explicações sobre o uso da fita métrica adaptada (com furos laterais no lado direito de dez em dez centímetros, e furos do lado esquerdo de cinco em cinco centímetros) foram muito importantes. A partir delas, os começaram a entender, por exemplo, o que representava um metro de comprimento.

    A partir desse exemplo, comecei a trabalhar as unidades mais utilizadas no dia a dia (quilômetro, metro, centímetro e milímetro). Com o uso de pedações de madeira, procurei fazer com que vivenciassem cada unidade, com exemplos para o quilômetro e para unidades menores que o metro.

    Tratei também dos conceitos de perímetro e área. Para tanto, usei um jornal para explicar o que representava um metro quadrado. Não entrei em cálculos. A discussão se deu apenas num nível conceitual.

    Os estudantes ficaram curiosos em conhecer as medidas da sala e também dos corredores da escola. Com isso, enfim, tiveram uma ideia da extensão que percorriam para chegar na sala de aula. Falei ainda sobre o uso da fita métrica para fazer medidas em casa e pedi a eles que ensinassem as pessoas de seu convívio sobre o que haviam aprendido.

    Quando apresentei a balança digital, e eles escutaram seus “pesos”, ficaram muito entusiasmados. Até então, era sempre outra pessoa que lhes informava de seus "pesos".

    Trabalhei também o conceito de massa – quilograma, grama e miligrama. Apresentei a eles uma balança de dois pratos. Pedi que manuseassem o equipamento. Aproveitei para explicar como eram "pesados" os que itens comprados na feira. Os estudantes entenderam tal uso quando colocaram as mãos nos pratos e perceberam o equilíbrio.

    Quando iniciei os estudos que necessitavam de raciocínio, foi muito difícil. A turma reclamou, dizendo, por exemplo, que estava demorando para chegar com os cálculos.

    Pedi um voto de confiança, estimulando os alunos para que pensassem nas ideias das operações. Inicialmente, os cálculos seriam feitos na calculadora, que, àquela altura, já era amada por eles.

    Entreguei, para a turma resolver, 20 problemas, numa lista adaptada para tinta e Braille. Alguns alunos apresentaram certa lentidão nos cálculos por falta de prática no uso da calculadora.

    Aproveitei que estavam empolgados com o que haviam aprendido nas oficinas e propus que fizessem os mesmos cálculos usando o Soroban, que é um aparelho de contar e calcular trazido para o Brasil, em 1908, pelos imigrantes japoneses, como parte de seu acervo cultural e de uso frequente na resolução de cálculos matemáticos cotidiano.

    Em 1949, Joaquim Lima de Moraes adaptou esse aparelho, colocando uma borracha abaixo das contas para uso das pessoas cegas como aparelho de cálculo, em substituição aos existentes à época, que eram de difícil manuseio.

    Apesar de, no IBC, o Soroban ser utilizado pelos deficientes visuais cegos desde o 2º ano do Ensino Fundamental, muitos têm dificuldades para operá-lo.

    Quando propus o uso do Soroban, inicialmente os estudantes não gostaram da ideia. Mas expliquei a eles que, nem sempre, poderiam usar a calculadora. Diante dessa informação, toparam usar o Soroban.

    Na sequência, planejei uma aula de reforço a respeito do uso do Soroban para aqueles que não tinham sido bem-sucedidos na atividade. O problema foi, então, resolvido, menos para os cinco estudantes que também apresentavam outros comprometimentos além do sensorial visão. Para eles, foi elaborado outro projeto, de atendimento individual.

    O melhor de tudo foi quando os estudantes de baixa visão me disseram que também gostariam de aprender Soroban. Eu quase chorei de felicidade porque eles apresentavam uma resistência muito grande para aprender Soroban. Alegavam que era para uso dos cegos.

    Na segunda etapa do projeto, usei o origami na Matemática para abordar práticas de vida diária, como dobrar uma toalha para que ocupasse o menor espaço possível num armário e confeccionar uma caixinha com base hexagonal, utilizando módulos. Tal etapa teve uma duração de nove encontros.

    Em 2016, concluí o Curso de Mestrado Profissional em Diversidade e Inclusão. A minha dissertação versou sobre a produção de material didático pedagógico de Matemática para deficientes visuais. Uma das questões que pesquisei foi, exatamente, o uso do origami na Matemática.

    Com base nas minhas pesquisas, propus aos estudantes a confecção de uma caixinha com base hexagonal, obtida pela soma de seis triângulos equiláteros, para guardar pequenos utensílios que se perdem com facilidade.

    Em seguida, expliquei como eles poderiam usar a caixinha para guardar pequenos objetos do dia a dia, como lápis e a punção (que proporciona a feitura dos pontos na cela Braille).

    Muitos desconheciam o que era origami. Após a explicação sobre seu uso, alguns perguntaram como fariam para dobrar o papel. Deixei que manuseassem o origami.

    Antes de iniciarmos as atividades, expliquei sobre polígono e forneci a todas as figuras de que iriam precisar. Antes de fazer as dobras numa folha retangular do tamanho A4, pedi que passassem lápis cera num dos lados da folha.

    Por incrível que pareça, para nós videntes, pintar uma folha parece ser fácil, mas, para o cego, é um trabalho que demanda muito tempo. A todo momento eu era chamada porque alguém tinha se perdido na pintura.

    Depois, apresentei a mesma folha cortada em seis retângulos. Esclareci que a caixinha a ser construída era modular, isto é, seis partes unidas formariam o inteiro, que seria o fundo da caixa.

    Não vou dizer que foi fácil. Eles tiveram muita dificuldade no início das dobras. Tive de interferir e consertar. Alguns fizeram menção de desistir, mas estimulei-os e, assim, prosseguiram até completar um módulo. Para a confecção dos demais módulos já não sentiram tanta dificuldade.

    Quando concluíram os seis módulos, chegou a vez de usarem a cola. Senti que se mostraram um pouco apreensivos. Constatei que a grande maioria deles nunca tinha tido contato com cola.

    Questionaram se ela não grudaria das mãos. Quando terminaram, tinha cola para todo lado. Ao lavarem as mãos, constataram que não havia lhes acontecido nada.

    Ressalto que tive que ajudar os estudantes cegos durante a colagem. Pedi que contassem a quantidade de triângulos equiláteros formados na base e me responderam com presteza.

    Os cinco estudantes com outros comprometimentos além do sensorial visão participaram ativamente, mesmo não respondendo ao que havia sido questionado. Fizeram as dobras e montaram a caixa com a minha ajuda. No final, entreguei um hexágono para cada participante. Os alunos, então, puderam colar por cima dos triângulos equiláteros, formando assim a base de sustentação.

    Tal trabalho ajudou muito os estudantes, que perceberam que a soma de seis triângulos equiláteros é a área de um hexágono regular. Ficaram encantados e orgulhosos com o produto final.

    Finalmente, apresentei a eles a ideia de dobrar uma toalha de banho. Fizemos uma simulação numa folha de papel retangular A4. As dobras foram previamente marcadas com as figuras geométricas triângulo retângulo e trapézio.

    Pedi que marcassem o lado da frente da folha com lápis de cor e, com o lado avesso virado para eles, iniciassem a dobra.

    Dessa vez as dificuldades foram bem reduzidas, ainda que tenham sido necessárias algumas intervenções. Os estudantes com outros comprometimentos além do sensorial também tentaram fazer as dobras, mas, nesse caso, tive de ajudá-los.

    Em seguida, apresentei a toalha que deveria ser dobrada e outra, já com a dobra feita. Indiquei também as costuras que formam o verso da toalha.

    Esse reconhecimento (do verso e do avesso) é fundamenta para o cego, pois propicia a ele a autonomia de se vestir sozinho.

    Dei algumas dicas sobre como dobrar o tecido, utilizando as figuras geométricas.

    Para que a dobra não desmanchasse, era necessário procurar uma abertura para encaixar. Usamos, para isso, o vértice inferior direito do trapézio.

    Os estudantes perguntaram, então, se poderiam fazer aquela dobradura em qualquer material com forma retangular. Afirmei que sim. Como tarefa, pedi que apresentassem um produto final, fazendo em casa o que haviam aprendido na oficina e enviando o resultado, em fotos, para o meu WhatsApp.

    Para minha surpresa, recebi as fotos no mesmo dia. Os responsáveis pelos alunos aproveitaram o contato para me agradecer, pois haviam aprendido também a dobrarem toalhas e, assim, a organizarem o armário.

    A minha maior surpresa foi quando “P” dobrou com perfeição um edredom e um cobertor de lã. “L”, por sua vez, ficou tão empolgado com o que havia aprendido que foi até a casa da avó para lhe ensinar. Ofereceu-se ainda para arrumar o armário de casa, dobrando as toalhas de forma divertida com o uso da geometria.

    A utilização das atividades de vida diária em interface com a Matemática estimulou mudanças comportamentais nos estudantes em relação à sua visão sobre a disciplina. A organização das oficinas no contraturno das aulas também foi importante para o alcance dos resultados descritos.

    Em relação ao uso da calculadora com sintetizador de voz, houve um fato muito interessante, que foi a interface com o Soroban. Os alunos faziam os cálculos no Soroban e usavam a calculadora para conferir o resultado.

    Além disso, os estudantes de baixa visão descontruíram o preconceito de que tal instrumento de cálculo manual era somente para cegos. O uso do Soroban em sala de aula, com a calculadora, passou a ser constante.

    Para avaliar a aprendizagem, usei uma lista com 20 situações relacionadas às quatro operações, e pedi que as resolvessem usando a calculadora. Fiz as intervenções em caso de dúvidas.

    Não posso dizer que o resultado foi de 100% de acertos. Mas, se compararmos o início com o fim, veremos uma diferença muito grande entre essas etapas. Quanto aos conteúdos abordados, houve muito proveito, e a turma perecebeu sua aplicabilidade em diversas situações do cotidiano.

    Saiba mais

    Esta prática nos aponta caminhos possíveis para trabalhar a Matemática (e possivelmente outras disciplinas) a partir de situações cotidianas desafiadoras para os cegos e que, normalmente, são negligenciadas nas famílias e nas escolas. Os materiais utilizados na prática podem ser obtidos, em muitos casos, com as próprias famílias.

    O professor que se inspirar nesta prática poderá, facilmente, fazer adaptações para os alunos de qualquer ano, modificando apenas os objetivos de aprendizagem.

    Uma ideia promissora é a extensão dessa metodologia para a abordagem de Ciências, e mesmo para Arte e movimento.

    Além disso, existem muitos aplicativos para smartphones que melhoram a acessibilidade para portadores de deficiência visual.