"Ao longo do Ensino Fundamental – Anos Finais, os estudantes se deparam com desafios de maior complexidade, sobretudo devido à necessidade de se apropriarem das diferentes lógicas de organização dos conhecimentos relacionados às áreas. Tendo em vista essa maior especialização, é importante, nos vários componentes curriculares, retomar e ressignificar as aprendizagens do Ensino Fundamental – Anos Iniciais no contexto das diferentes áreas, visando ao aprofundamento e à ampliação de repertórios dos estudantes. Nesse sentido, também é importante fortalecer a autonomia desses adolescentes, oferecendo-lhes condições e ferramentas para acessar e interagir criticamente com diferentes conhecimentos e fontes de informação." (BNCC, 2018, p. 60)

Podcast

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Tribunal: caso bullying

Área(s): Linguagens.

Desenvolver o poder argumentativo dos alunos a partir de uma ação dramática/cena improvisada num tribunal durante o julgamento de um caso de bullying.

Componente(s): Arte; Língua Portuguesa.
Quando: Sem período específico.
Materiais:
  • figurinos;
  • objetos de cena;
  • vídeos;
  • textos;
  • adereços;
  • acesso à internet.

Habilidades trabalhadas: EF69AR26; EF69AR27; EF69AR28; EF69AR30; EF89LP34; EF69LP13; EF69LP14; EF69LP15.
Professor(a) responsável: Georgina Furtado Franca Diniz.
Escola: Escola Estadual de Ensino Fundamental Dr. Otavio Novais, João Pessoa (PB).

O que é:

Da necessidade de transformação da realidade na sala de aula nasceu o projeto “Tribunal: caso bullying”, um espaço aberto de discussão e debates para a articulação de três eixos de aprendizagem presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais: a produção, a contextualização e a apreciação.

Dada a dificuldade em se discutir o tema bullying na sala de aula, pela carência argumentativa dos alunos e pela hostilidade existente entre eles, lancei mão das técnicas teatrais como forma de intervenção.

Minha inspiração foi o teatro fórum de Augusto Boal (1931-2009), visto pelo autor como um espaço de transformação do real, e não apenas como um ambiente contemplativo (Boal, 2009, p. 163).

Sendo assim, o teatro surgiu para nós como estratégia de transformação – das atitudes dos alunos, da redução da violência, pelo desenvolvimento do poder argumentativo, e da própria estrutura da sala de aula, transformada em local de criação da ação dramática. O resultado foi a criação de uma dramaturgia, “O amigo Invejoso”.

O projeto buscou, a partir da evolução argumentativa, transformar a realidade da sala de aula e reduzir, assim, o clima hostil entre os alunos, gerando atitudes mais solidárias e de consenso na resolução de conflitos.

O projeto foi realizado na turma de 6º ano entre fevereiro a maio. Essa turma foi escolhida porque apresentava, de forma mais evidente, os problemas destacados, ou seja, a carência argumentativa dos alunos e a hostilidade.

Em todas as classes, já era visível que o diálogo entre a professora e os alunos não era bem-vindo. Prevaleciam o desânimo e o descontentamento. O que os incomoda? - eu me perguntava. O que falta para que se expressem mais livremente sobre um assunto abordado em sala de aula?

O 6º ano não era muito diferente das outras turmas. Havia, porém, um diferencial: embora mais agressivos uns com os outros, os alunos tinham grande empolgação e desprendimento nas experiências de improvisação.

Como complemento do diagnóstico inicial, pedi aos alunos que escrevessem curiosidades sobre suas famílias e contassem qual era a profissão dos seus pais.

Percebi em alguns um certo constrangimento para falarem dos trabalhos dos pais. Seria isso gerado por um sentimento de inferioridade, tornando-os retraídos quando provocados para uma aprendizagem emancipadora?(Rancière, 2012).

Assumi, então, o desafio de criar um espaço de emancipação, aberto à fala e de conexão entre alunos e a professora. Um espaço onde se discutisse senso de ética, solidariedade e justiça por meio do teatro, fortalecendo a autoestima e ajudando a repensar o tema bullying.

Como fazer:

Ritual do Julgamento:

Nessa atividade, tivemos várias ações:

  • relato do repórter;
  • abertura da sessão pelo juiz e relato do caso;
  • depoimento da vítima (relato com uma situação provocada pelo conceito gerador,no caso, a inveja);
  • relatos das testemunhas (testemunhas de defesa e testemunhas de acusação);
  • questionamentos dos advogados e promotores às testemunhas;
  • relato do perito, o psiquiatra;
  • questionamentos dos advogados e promotores ao réu (acusado); depoimento dos escrivães e júri popular;
  • reconstituição dos fatos pelos pontos de vista da defesa e da acusação (cena improvisada de um fato da situação narrada pela vítima e pelo acusado, por solicitação do juiz);
  • sentença do juiz.

Dos 30 alunos da sala de aula, 15 participaram da dramatização. Foram três juízes, uma vítima, um réu, três advogados, três promotores, uma testemunha de defesa, uma testemunha de acusação, um perito (psiquiatra) e um repórter. Os outros 15 alunos representaram oito escrivães e sete pessoas do júri popular.

Reunião do Júri:

Nessa atividade, tivemos várias ações:

  • abordagens sobre bullying e escolha do conceito gerador (a inveja);
  • construção do espaço cênico;
  • observação de vídeos gravados e dos álbuns dos trabalhos nas redes sociais;
  • avaliações do processo criativo e autoavaliações dos alunos;
  • formulações orais e escritas para o direcionamento dos julgamentos futuros;
  • apresentação de filmes;
  • leituras dramatizadas;
  • pesquisas de materiais;
  • apresentações públicas.

É importante que, nesse tipo de experiência, haja a troca de papéis. Ao se colocar no papel do outro, num processo de alteridade e empatia, o aluno participa e aprende.

Essa troca de papéis no ritual do Julgamento e nas reuniões do júri capacita os alunos para a apropriação do próprio aprendizado, gerando criação, apreciação e contextualização dos relacionamentos.

Nas primeiras reuniões do júri, foram explicitadas as expectativas de aprendizagem, os critérios de avaliação e o funcionamento do “Jogo do Tribunal”.

O Jogo do Tribunal:

Regras: Venceria o grupo que conseguisse convencer o(s) juízes(s) de seus argumentos. A vitória viria na sentença.

Um grupo seria composto pela vítima, os advogados e as testemunhas de defesa. O outro, pelo réu, pelos promotores e pelas testemunhas de acusação.

O perito (psiquiatra) seria a peça-surpresa e de desequilíbrio no jogo, podendo construir seus argumentos tanto do ponto de vista da vítima, para favorecê-la, como da acusação, para colocá-la em desvantagem.

Tempo de realização: Uma hora (15 minutos antes e depois, para montagem e desmontagem do cenário).

Onde: sala de aula, transformada em tribunal.

Quem: advogados, promotores, juízes, testemunhas, vítima, réu, repórter, perito (psiquiatra), escrivães, júri popular, todos interpretados pelos alunos.

Bullying:

Iniciei os trabalhos conversando com os alunos sobre a palavra bullying. Perguntei: “Quem sabe o que significa bullying?”

Alguns responderam: “empurrar de propósito”, “chamar de gorda”.

Provocando, cada vez mais, cheguei numa tradução literal da palavra: comportamento agressivo.

E continuei: “Se alguém empurrar uma pessoa, uma só vez, isso seria caracterizado como bullying?”.

A sala permaneceu em silêncio. Continuei: “E se essa provocação for mais de uma vez?” “E se acontecer constantemente?”.

Uma menina gritou lá do fundo: “Eu me desesperaria!”

Prossegui: “E nessa situação, pessoal, seria bullying?

Timidamente, alguns responderam que sim. Outros me olharam desconfiados. Um deles chegou perto de mim e, baixinho, disse: “Não conta pra ninguém, sofri bullying, professora”.

Continuei o desafio: “E qual será a razão de alguém fazer bullying com outra pessoa?” Alguém gritou: “Ele ser mau!”.

“Será mesmo que ele é mau?”, perguntei. “Todos concordam?”

Então, outro aluno disse: “Não professora, porque as vezes nos arrependemos”.

Completei a observação: “Algumas vezes, vemos o outro com medo e como uma ameaça e, assim, reagimos com atitudes hostis. Será isso, pessoal? Será que quando uma pessoa insiste em humilhar outra, por causa da cor da pele, do jeito e do tipo de cabelo, é por que não aceita as diferenças?”

Alguns balançaram a cabeça afirmativamente.

“Então, pessoal, existem causas que levam ao bullying. Por não haver respeito às diferenças, surgem preconceitos e discriminações. E isso pode levar a consequências drásticas”.

Um aluno falou: “Algumas pessoas tem depressão e ficam tristes.” Completei dizendo: “Você tem razão. As consequências vão das mais simples, como uma dor de estômago, àquelas sérias, como uma tristeza profunda, que leva à depressão. Que tal um desafio?”

A partir de conceitos que fomos incluindo, juntos, no quadro, de maneira aleatória, propus que escrevessem uma história com passado (causas do bullying), presente (fato ocorrido de bullying) e futuro (consequências do bullying). Poderia ser um relato de experiências vivenciadas por eles ou uma história inventada.

Os conceitos escritos no quadro e discutidos foram solidariedade, inveja, amor, desrespeito, humilhação, solidão, agressão, união, tristeza, amizade, depressão, ódio, paz, violência doméstica, racismo e homofobia, entre outros.

Infelizmente, na turma do 6º ano, havia crianças com sérias dificuldades de encadeamento de ideias para a construção textual.

Tínhamos, então, um problema: como criar uma história que fosse trabalhada na forma de teatro se os alunos passavam por sérias dificuldades de construção textual?

Resolvi partir para improvisações. Os alunos se tornariam protagonistas das ações improvisadas, dos depoimentos e dos diálogos dos personagens.

Esse foi o primeiro ciclo de aprendizados, com duração de três meses. O texto teatral nasceu da ação performática e das improvisações. Ele nos revelou o processo de construção de aprendizados.

Convidei a turma, então, para que criássemos um tribunal. O conceito gerador escolhido foi a inveja.

A transformação da Sala de Aula em Espaço Cênico – o Tribunal:

Diante do convite, todos se alvoroçaram, levantando as mãos. A empolgação foi geral. Os alunos estavam ansiosos para pegarem seus figurinos (roupas do meu guarda-roupa pessoal e profissional de professora/artista).

Eu disse, então: “Calma, pessoal! Num tribunal, temos muitos personagens. Terá lugar para todos! Temos os advogados, os promotores, as vítimas, as testemunhas, os psiquiatras, os escrivães e até os repórteres!”

Enquanto eu falava sobre cada um dos papéis, todos corriam para perto de mim querendo falar de suas escolhas.

Em meio ao alvoroço e à animação, fui dando esclarecimentos sobre as funções dos profissionais num tribunal.

Alguns, porém, estavam desconfiados. “Professora, e eu, não farei nada?”.

Eu animava, falando: “Que tal como escrivão? Depois trocamos os papéis”.

Esses eram os meninos mais tímidos e reservados, e que precisavam de uma maior atenção.

A sala de aula se transformou para construção do nosso Tribunal, tanto no arranjo dos elementos físicos como no modo de relacionamento (alunos e professora).

No Tribunal, os objetos da sala de aula passaram a ter outras funções,ou melhor, tornaram-se objetos vazios. E, como tal, poderiam se transformar em qualquer outra coisa para servir ao trabalho dos atores/alunos.

O Amigo Invejoso:

Pelas ações e pelos diálogos, o ritual do julgamento foi se desenvolvendo. O objetivo era gerar nos alunos uma percepção sobre o bullying.

O ritual tinha a minha mediação. Enquanto filmava o julgamento, eu interagia com os alunos. Dava indicações, trocava ideias e fazia questionamentos. O objetivo era provocá-los para que externassem seus pensamentos e mantivessem o entusiasmo e o empenho ao longo da discussão e do desvendamento do caso.

Ocorria uma redistribuição de papéis e lugares, por meio da realização do ritual, algo próprio da lógica do pedagogo emancipador(Rancière, 2012), rompendo as fronteiras entre o olhar e o agir, entre o dizer e o fazer, entre o ouvir e o falar.

Foi ao longo do ritual que a Dramaturgia “O Amigo Invejoso” foi sendo criada. Ela foi se constituindo do acontecimento e do jogo que a constitui (Foucault, 1970).

O aprendizado ocorreu simultaneamente ao julgamento no Tribunal. Em cena, fatos, conflitos e falas se confundiam com as experiências, os medos, as dúvidas, as superações e o entusiasmo dos alunos.

Encontrar um sentido que levasse o caso de bullying à sentença final era o que gerava a dinâmica do estudo de caso.

A aprendizagem e o projeto se efetivaram com os argumentos construídos no Tribunal, onde os alunos ganharam voz, por meio dos seus pontos de vista e do posicionamento crítico sobre a cena/realidade.

Dessa forma, a partir das relações estabelecidas no Tribunal, foi possível instigar outras maneiras de ver e pensar.

Construímos valores e atitudes para além dos preconceitos e das discriminações, numa escrita reflexiva e crítica que, sendo também performática, foi se tornando autocrítica.

Assim, ela foi sendo elaborada a partir de meta-pontos de vista (Morin, 2000), entre o real e fictício, por meio das ações dos personagens/alunos, dos diálogos, dos conflitos e da dramaturgia, na construção de um sentido de ética e justiça em nome de uma cultura pela paz.

Socialização:

Fotos, textos e vídeos foram sendo compartilhados no Facebook, tanto na página ”Tribunal: caso bullying” como nos perfis pessoais do alunos. Esse material serviu para que todos pudessem acompanhar o processo de evolução do projeto e o aprendizado.

Foi ainda uma forma de expandir as fronteiras da escola, possibilitando a troca de ideias com os alunos, familiares e profissionais da educação, e também abrindo um caminho para a aplicação do projeto por outros professores.

Os alunos foram avaliados durante a construção do Tribunal, unindo análise quantitativa e qualitativa. Isso incluiu as expectativas de aprendizagens presentes nos objetivos propostos.

Elaborei três avaliações, escritas em momentos diferentes. Além disso, estabeleci pontos de regulação para observar o comportamento dos alunos.

Levei em conta os seguintes aspectos para analisar o comportamento de cada aluno:

  • frequentemente entra em briga com os colegas ou os provoca;
  • mostra-se agressivo;
  • revela medo de falar ou se expor;
  • coopera com os colegas;
  • mostra-se participativo;
  • compartilha o aprendizado.

Questionários

Na evolução do trabalho, produzi diversos questionários, aplicados em momentos diferentes. As perguntas foram as seguintes:

Avaliação no início do processo:

1. Qual caso de bullying é julgado no Tribunal?

2. Quais os personagens envolvidos no julgamento?

3. Faça um resumo do relato feito pela vítima e o acusado.

4. Quais perguntas os advogados fazem para sua testemunha?

5. Quais perguntas os promotores fazem para sua testemunha?

Avaliação no meio do processo:

1. Fale sobre o seu personagem;

2. O seu personagem defende a vítima ou o réu e por quê?;

3. Fale de um acontecimento que prove que o réu é inocente ou culpado;

4. Conte a história do Tribunal.

Avaliação feita no final do processo:

Esse trabalho, em particular, foi realizado em duas partes, com as seguintes questões:

Parte 1:

1. Qual o caso de bullying que é julgado no Tribunal? (fale com suas palavras sobre a história que é julgada no Tribunal).

2. Quais os personagens envolvidos no julgamento? (fale sobre cada um deles).

3. Faça um resumo do relato feito pela vítima e pelo acusado (réu).

4. O que alegam os advogados em defesa do réu e o que alegam os promotores contra o réu e o que esclarece o psiquiatra? (faça um breve resumo do posicionamento assumido por cada um deles em defesa dos seus clientes).

5. O juiz chegou a dar a sentença final? (em caso afirmativo, qual foi a sentença final do juiz e seus argumentos para chegar a sentença final. Em caso negativo, se você fosse o juiz, qual seria a sua sentença e justifique os seus argumentos).

Parte 2:

1. O que sentiu ao fazer um papel no Tribunal?

2. De qual mais gostou e por quê?

3. O que precisa fazer para melhorar o desempenho?

4. O que mudaria no Tribunal para torná-lo cada vez mais interessante?

5. O que foi mais difícil de fazer? Por quê?

6. O que foi mais divertido? Por quê?

7. Faça um relato em primeira pessoa explicando como se fosse o seu personagem: Quem é você? Como é a sua profissão? (como se fosse dar uma entrevista).

8. Fazer o Tribunal fez você pensar melhor sobre o bullying? Por quê?

9. Depois de fazer o Tribunal, deu vontade de, quando for adulto, exercer uma dessas profissões que viveu no Tribunal? Ou ser ator? Qual e por quê?

10. O que acharia se o que fizemos e nossa dramaturgia “O Amigo Invejoso” virassem um livro das nossas experiências?

A avaliação sobre cada aluno levou em conta os seguintes critérios:

  • estar capacitado para construir relatos das suas experiências com o Tribunal;
  • saber improvisar nas situações de jogo do Tribunal;
  • estar capacitado a emitir opiniões sobre suas criações e as dos colegas;
  • saber relacionar a realidade sociocultural a partir de sua criação com a de outros autores apresentados em vídeos ou filmes da história do teatro.

Na fase de Avaliação I, apenas dez jovens (30% do total) escreveram relatos. Essa porcentagem representava a quantidade dos alunos que se mantinham fora das brigas e eram participativos no Tribunal.

Na Avaliação II, foram 20 os relatos (70%), numa evolução no número de alunos capazes de escrever sobre a história do Tribunal e a emitir opiniões. Esse resultado também tinha correspondência com o total de alunos participantes ativamente do Tribunal.

Na Avaliação III, nada menos do que 100% dos alunos foram capazes de relatar sobre a história do Tribunal, e a emitir suas opiniões.

Avaliação das Etapas de Trabalho:

Etapa 1 – “Construindo Conceitos sobre Bullying

Acostumados a um espaço com carteiras enfileiradas e a estarem mais em situação de escuta e escrita do que em situação discursiva e participativa, os alunos não sabiam lidar com a liberdade.

Revelavam incapacidade e medo em se pronunciarem, assumirem posições e se expressarem sobre o aprendizado e sua própria realidade.

A liberdade era associada à desordem, e não ao ato de aprender. Consequentemente, havia ausência do discurso argumentativo de ideias, que poderia ser o precursor de um renovado senso de justiça e de respeito às diferenças e, primordialmente, o gerador de uma cultura pela paz.

A dinâmica de trabalho com os conceitos sobre o bullying motivou o debate de ideias, fazendo com que os alunos construíssem seus próprios pensamentos sobre o tema.

No início do projeto, porém, parte da turma se mantinha retraída, com o costume de esconder cadernos e instigar brigas.

Essa situação me levou a pensar que a falta de construção argumentativa poderia ser fruto da exclusão social e da falta de protagonismo dos alunos, numa reprodução inconsciente do ambiente de exclusão e indiferença em que viviam.

Etapa 2 – “Transformação da Sala de Aula em Espaço Cênico: o Tribunal”

Com a transformação da sala de aula num tribunal, o comportamento dos alunos também mudou. Eles foram percebendo, a cada aula e nova experiência no Tribunal, que era preciso ter a cooperação e o companheirismo como práticas.

Nas primeiras experiências, eu sozinha montava o Tribunal. A realidade foi aos poucos se transformando, e eles, juntamente comigo, passaram a afastar carteiras e cadeiras, abrindo espaços e construindo um novo arranjo para os elementos envolvidos.

Os alunos lembravam arquitetos de interiores, cenógrafos ou diretores teatrais, ajudando-se na escolha, na troca e no manuseio dos figurinos, adereços e objetos de cena, e desenvolvendo sua própria noção de espaço.

Com criatividade, deram uma personalidade própria à sala de aula, transformada em Tribunal. Em momentos diferentes, era comum eu ouvir coisas do tipo: “Posso ajudar, Professora?” ou “Professora, deixa que eu levo!”.

Eu dizia:

“Mas é pesado para você!”.

E ouvia:

“Não é, professora”.

Também era comum ouvir: “vamos brincar hoje?”.

Com frequência, eu via rostinhos diferentes assistindo às aulas do 6º ano – o mesmo acontecia em outras turmas do projeto.

Os alunos exclamavam: “Tem aluno novo na sala!” Eram colegas de outras turmas, que queriam participar da experiência conosco. Mas, descobertos pelos funcionários, retornavam às salas de origem.

Ao final de cada experiência, recolhíamos tudo e desmontávamos o Tribunal, para que a sala de aula voltasse ao que era antes, um espaço de carteiras enfileiradas.

Etapa 3 – “O Amigo Invejoso"

Com o ritual do Tribunal, os alunos aprenderam a construir argumentos do próprio jogo da cena. Isso resultou dos questionamentos elaborados, das declarações dadas e dos problemas e conflitos que surgiram no “aqui-e-agora” das improvisações. A dramaturgia “O amigo invejoso” foi criada pelos alunos no jogo de cena realizado por meio do ritual.

Os alunos construíram os sentidos da história, defendida e julgada no Tribunal, colocando-se dentro da própria experiência (Hernadez, 2008).

Dando sentido ao aprendizado, descobriram o posicionamento crítico sobre a realidade julgada, que, embora fictícia, também se relacionava com a realidade deles.

Em alguns momentos, os alunos tiveram dificuldade para se expressarem verbalmente. Mas não considerei isso impedimento. Ao contrário. Eu e os alunos soprávamos dicas ao ouvido. Uns incentivavam os outros, e surgiam momentos descontraídos, como quando o réu falou para o juiz:

“É para você me fazer perguntas seu juiz! Se liga!”

O Tribunal foi se tornando divertido, e todos foram aprendendo com os erros e os acertos. O silêncio também foi aproveitado, inclusive como “gancho” para desenrolar o julgamento.

Os alunos aprenderam democraticamente a dar a palavra e a ter seu momento de fala, de agir e de esperar a vez do amigo.

A dinâmica do Tribunal possibilitou a cada aluno conhecer conceitos e construir valores e atitudes, colocando-se no lugar do outro. O posicionamento frente às situações construídas criou um espaço para o consenso e o direito à voz e à escuta.

A autoestima também foi valorizada no processo, quando os alunos tiveram a oportunidade de vestirem trajes que antes nunca haviam usado. O orgulho surgiu do fato de estarem vestidos como profissionais.

O que antes era apatia se tornou identidade e disponibilidade, consequências da intimidade e da desenvoltura adquiridas na interpretação dos personagens.

Os amigos que anteriormente se desentendiam por valores e atitudes egoístas e individualistas passaram a se ver de outra maneira.

A Socialização:

Mesmo em realidades diversas, os professores podem utilizar o projeto do Tribunal para irem além do caso de bullying, utilizando a experiência para outras situações.

Como parte da proposta de socialização do projeto, os alunos apresentaram o espetáculo “Tribunal: caso bullying” no Teatro Paulo Pontes, em João Pessoa (PB).

Planejamos levar o projeto para as universidades, com a possibilidade de os alunos dividirem as suas experiências com estudantes universitários.

Autoavaliação:

O Tribunal empolgou pela surpresa e pelo trabalho conjunto e investigativo. Muitas vezes, fiquei surpresa com as saídas argumentativas dos alunos, e isso me fez aprender.

A dramaturgia “O amigo Invejoso” passou a ser, então, um encontro com a realidade transformada. Um lugar acolhedor, pautado pela autoestima, pela solidariedade e pelo companheirismo.

Assim, espero que esse projeto seja uma faísca para a criação de pontes de amizade e trabalho superando distâncias e fronteiras regionais e socioculturais na construção de uma sala de aula diferente.

Saiba mais

É importante salientar que, caso a questão não seja solucionada no primeiro julgamento, poderá haver mais sessões do Tribunal, dependendo do avanço dos alunos em sua aprendizagem e das realidades específicas.

Sendo assim, o número de sessões será o necessário para que os alunos encontrem uma resolução para o conflito da cena e se chegue ao veredicto do juiz.

Também podem ser feitas leituras dramatizadas do texto teatral dos alunos (e de outros dramaturgos já consagrados).

Além disso, podem ser feitas pesquisa de materiais cênicos e apresentações abertas ao público, na escola ou em outros espaços públicos.